Algumas Virtudes Necessárias em Maçonaria.
Tendo colocado de lado, não vou dizer tudo o que faz a alegria de viver, mas pelo menos aquilo que preenche a indulgência dos nossos costumes e coloca um sorriso na boca da nossa natureza humana, retomei o cajado do peregrino e, com a minha mochila às costas, carregada de preceitos antigos, exemplos da experiência dos meus ancestrais, tomei a estrada que leva ao outro lado do mundo, em direção aos países onde encontramos na sua pureza as três colunas intatas do nosso Templo: Sabedoria, Força e Beleza.
Tendo viajado algum tempo – o tempo de um sonho! – nesse “Bosque Sagrado”, venho, meus Irmãos, falar-vos das conclusões que tirei durante minha grande viagem sobre algumas virtudes, ou mais exatamente sobre alguns comportamentos maçônicos.
Efetivamente dei por mim nesse Templo ideal, dos homens de boa vontade – não dos santos – onde decorriam discussões sobre assuntos do nosso século. E precisamente porque sabiam bem que não eram santos, esses homens sábios tinham instituído um código para regular as discussões. Pois faz falta um código que regule todas as assembléias de homens. Faz falta um código para que cada um tenha o direito de exprimir o seu pensamento. Faz falta um código para que cada um possa criticar o pensamento do outro. Faz falta um código para que seja possível tirar uma síntese de dois pensamentos aparentemente divergentes. Faz, sobretudo falta um código para que a linguagem de uns e de outros possa ao mesmo tempo servir fielmente cada um dos modos de pensar e exprimir dos seus autores e ao mesmo tempo adaptar-se ao trabalho de síntese que é o objetivo essencial de toda a assembléia humana.
Esses homens do meu sonho falavam a mesma língua, apesar de aparentarem provir de todos os países do mundo.
Esses países tão diversos, eram as suas origens…
Mas a longa viagem que eles impuseram a si mesmos tinha suavizado as rugosidades e as dessemelhanças que pudessem ter existido no passado entre as suas línguas respectivas.
Esses homens, cheios de sabedoria, falavam então a mesma língua. Quando um exprimia o seu pensamento, imbuído tanto de uma recordação antiga como da aspiração de encontrar um novo ideal, os outros, numa transposição imediata imaginavam-se no lugar dele, de modo a poder apreender em detalhe e integralmente o fundamento do pensamento que estava a ser expresso ante eles.
Eles tinham concluído que, aquilo que há de mais belo no ser humano é a sua capacidade de pensar.
Para alguns dos presentes na assembléia, esse pensamento era científico;
Para outros, vinha da espontaneidade da alma;
Para todos – tanto materialistas com místicos – esse pensamento guiava a humanidade de encontro a um ideal.
Mas qual era o objeto desse pensamento?
Notei que o respeito profundo que nutriam pelo pensamento parecia regular a escala de valores desses iniciados.
Nas sua longas assembleias, os jogos que alimentavam o espírito e a missão desinteressada que os unia, tinham moldado os seus comportamentos mais do que a mera educação era capaz de o fazer. Produziram assim uma infinita cortesia, que podia ser confundida por uma verdadeira deferência, tanto que cada um dava de si mesmo, colocando-se, como um cavaleiro, à disposição do orador em uso da palavra num dado momento, para o secundar na complexa tarefa da procura da verdade.
Esse sentimento de deferência da assembleia face ao orador comportava na sua base outro mais amplo: o respeito pela pessoa humana. O respeito daqueles que sabem o que é o trabalho para o trabalhador. O infinito respeito que têm aqueles que escutam para com aquele que fala, para com aquele que só fala depois de um silêncio em que longamente reflectiu. Para com aquele que teve a força de ordenar o seu pensamento, a coragem de concluir uma tese, e que deposita agora aos pés da assembléia a sua obra.
Incontestavelmente, parecia manifestar-se ali um poder transcendente que ligava os homens daquela assembléia. Muito tempo trabalharam juntos, respeitando as regras tutelares da sua Ordem, o que lhes impôs um longo silêncio antes que ousassem tomar a palavra. Silêncio que os formou aos poucos por intermédio da meditação – a meditação que, entre eles não é uma palavra vã.
Mas a seriedade do seu propósito, a importância que dão à obra conjunta, o sentido de responsabilidade que anima cada um deles, face a si mesmos e face aos outros, faz com que quando um deles inicia uma exposição, todos lhe dedicam a mais apaixonada atenção – se me é permitido, apenas desta vez sem exemplo, usar o termo paixão, sobre aquele lugar onde apenas reina a pureza…
Mas o dedo de Deus chamou-me à Ordem (é que os Deuses ofendem-se quando os homens se querem passar por puros!), e o meu sonho teve um fim brusco, pois dei comigo no caminho de regresso outra vez antes de poder investigar mais além…
Com o meu cajado de peregrino na mão, a minha pesada mochila sobre as costas – pesada agora de toda a sabedoria dos antigos, não certamente da minha – eu sonhava enquanto caminhava de regresso a esta Loja e até vós, meus Irmãos, como muitas vezes sonho.
Pensei numa Loja – a do sonho – e depois noutra – a nossa. Meditei sobre aqueles sábios e o seu carácter. Num dado momento vocês apareceram-me todos numa longa cadeia de união, cada um com as qualidades que vos são próprias, cada um na vossa encantadora individualidade, cada um firmando o precioso pavimento mosaico do nosso Templo e da sua extraordinária egrégora. Não sabereis jamais o quanto vos amei a todos nessa longa meditação.
Sonhei que, para progredirmos ainda mais, nos faltava tempo. Que para progredirmos ainda mais faltava sermos indulgentes uns com os outros. Que a serenidade dos grandes iniciados não pode ser adquirida em poucos anos. São necessárias provas, e mais tarde a força para decantar essas mesmas provas como quem decanta um velho tinto de Bordéus. E sonhei que no nosso vale de lágrimas que é a vida, as coisas eram bem diferentes desse “Bosque Sagrado” do qual regressava agora a passos lentos.
Lá, tudo era calma e pureza. É por isso fácil pensar de modo claro e escutar com reverência.
Mas aqui, os pobres homens que vestem os mesmos ornamentos, que se cingem aos mesmos rituais, mas que são desafortunados Irmãos no seu século de infortúnio, estes daqui adoptaram uma palavra de que fazem grande alarido, porque reconheceram que era necessário suportarem-se uns aos outros sem criar celeumas. Essa palavra é Tolerância!
Considerarei a palavra e meditei sobre ela… Conforme o meu espírito se inclinava para aquela Loja no alto, que é agradável ou para estas que temos, que despertam o sarcasmo, interpretava a noção de Tolerância de modo muito diferente.
Aquela lá do alto dizia-me que a Tolerância tinha como seu ativo, entre outros benefícios profanos, a paz religiosa e, nos nossos templos, lograva uma compreensão mais ampla entre os Irmãos, uma convivência mais humana de todas as diferenças sociais. Já o sarcasmo recordava-me, pelo contrário, coisas abomináveis. Tolerar-se?! Tolerar alguém?! Mas que pobre noção humana, tão longínqua da fraternidade! Tolerar-se, é o mesmo que deixar dizer, deixar fazer, deixar estar como está, permitir o absurdo pela indiferença, permitir o erro pela sua simples existência. Em todo o caso, tolerar é esquecer rápido, deixar passar…
Concluía, pela milésima vez durante a minha existência, que o sarcasmo é sempre mau conselheiro.
Por que tanto fel? Por que ficar preso naquilo que não serve a ninguém, naquilo que é triste?
Quem foi o grande homem que pronunciou estas palavras: “os pessimistas são espectadores”?
Ora, a missão dos homens, assim me parece, não é a de ser simples espectadores… Cada um de nós sabe que há uma tarefa a cumprir. É para a tornar mais ligeira – às vezes até mais doce – que nós nos reunimos aqui, em Loja. Se a tristeza nos invade por vezes, pois a vida é rude, deixamos de vir; e é no nosso cantinho íntimo que repisamos as nossas misérias, recalcamos os nossas melancolias, relemos o nosso Schopenhauer, mesmo depois de aqui termos lido Montaigne!
Perante esse dilema eterno, o de tolerar para deixar estar, sonhei que, em vez dele, tínhamos chegado a uma outra noção, à qual nos ligámos com entusiasmo no meu sonho. A noção do amor fraternal, aquela que pode facilmente unir-nos. Sem precisar de “Tolerar” o intolerável. Sem precisar ser exposto ao pior do carácter humano e ao à opinião medíocre.
Assim, o que faz falta não é tolerar as imperfeições e ideais mal formadas. O que faz falta é trazer para aqui o melhor de nós mesmos, deixando lá fora as coisas que queremos que os outros tolerem em nós. Avançar tranqüilos, trabalhando na nossa Loja, cada um de nós isoladamente e em coletivo, obrigando-nos a jamais chocar ninguém com as nossas palavras ou atos. Há tantas formas na nossa admirável língua de enunciar os nossos propósitos e ainda assim conservar a nossa personalidade! Isso é que é ter formação maçônica. Isso é que é ter cultura intelectual. E a superioridade da formação maçônica sobre a formação intelectual está no seu altruísmo.
Assim, meus Irmãos, aqui, nesta Loja, tudo pode ter lugar, porque estamos aqui para amar o nosso próximo. Tudo pode ter lugar, e não ser simplesmente “tolerado”.
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Fonte: R. L. “Les Amitiés Internationales”, in “Les Cahiers de la Grande Loge de France”, Setembro de 1949
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