segunda-feira, 27 de abril de 2015


Um Novo Tempo

 

Física sem mistério
 
Como esse conceito evoluiu ao longo da história e foi revolucionado no século 20.
 
“O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei." (Santo Agostinho, 354-430)
 
O atual estilo de vida que levamos, principalmente nas grandes cidades, repleto de compromissos e atividades, nos transforma em escravos do tempo. Sobra pouco tempo para algumas das coisas que mais apreciamos, como ficarmos com as pessoas que amamos ou fazermos o que realmente gostamos. Sem dúvida, ansiamos por mais tempo. Tentamos nos libertar da opressão dos relógios, aprendendo a otimizar as nossas atividades e a priorizar o que é realmente importante para nós. Afinal de contas, sabemos realmente o que seja o tempo?
 
Analisada do ponto de vista humano, a noção de tempo varia de indivíduo para indivíduo. Dependendo da idade ou do momento de vida, sentimos sua passagem de maneira diferente. Nos primeiros anos da infância, temos a sensação de que ele passa muito devagar, quase como se fosse imóvel. Algumas crianças reclamam que demora muito para chegar o aniversário, ou que os minutos durante os quais são colocadas de castigo parecem uma eternidade. Conforme passamos pela adolescência e chegamos à fase adulta, aumentam nossos compromissos e a sensação é que o tempo começa a passar mais depressa. Para algumas pessoas, principalmente as solitárias, ao atingir a velhice, o tempo também passa lentamente.
 
Nossa noção de tempo não está ligada apenas ao nosso íntimo – o tempo psicológico –, mas está relacionada também à cultura e à sociedade em que estamos inseridos. Percebemos sua passagem também a partir dos pontos de referência demarcados por outras pessoas. Esses pontos de referência evoluíram muito desde o início da humanidade. O tempo tem, portanto, uma história.
 
As primeiras formas de marcar o tempo estavam relacionadas ao movimento dos corpos celestes. Em particular, o movimento do Sol, da Lua e das estrelas foram os primeiros relógios. Outros instrumentos como os relógios de areia e a clipsidra (uma espécie de concha furada para vazar a água) eram utilizados para medir intervalos mais curtos.
 
De maneira mais objetiva, o tempo começou a ser medido com maior precisão na época das Grandes Navegações, pois seu conhecimento era de fundamental importância para orientar os navegantes. A diferença entre o tempo medido no relógio e aquele associado com a posição do Sol permitia que os navegantes determinassem a longitude, ou seja, quanto eles tinham viajado na direção oeste-leste. A medida da latitude – quanto eles tinham viajado na direção norte-sul – era determinada a partir da posição das estrelas no céu.
 
Por volta do ano de 1762 foi inventado um relógio que tinha a precisão de um segundo em um mês, mesmo em um barco em movimento. O relógio era acertado com a hora do ponto de partida da embarcação e a longitude do ponto era calculada comparando a diferença entre a hora local (medida pela altura solar, por exemplo) com a hora que o relógio marca. Cada hora de diferença para mais ou para menos corresponde a um deslocamento de 15 graus de longitude leste ou oeste, respectivamente.
 
De Galileu a Einstein
 
Galileu Galilei, um dos maiores gênios da história, preocupou-se em medir e utilizar o tempo como uma maneira de compreender a natureza. Ao determinar equações de movimento da queda dos corpos, Galileu começou a mostrar que ele faz parte da natureza, pois era possível prever os movimentos conforme o tempo passava. Posteriormente, Isaac Newton, que construiu as bases da física clássica, apresentou o conceito de tempo absoluto, como se fosse um rio que fluísse sempre para frente e de maneira uniforme, seja qual fosse o ponto de vista – o tempo simplesmente passa.
 
A persitência da memória, tela de 1931 do catalão Salvador Dalí (1904-1989).
 
Entretanto, no começo do século 20, o conceito de tempo, principalmente na física, mudou radicalmente. Para explicar novas descobertas e ideias, como o fato de a luz ser uma onda eletromagnética que viaja sempre na mesma velocidade de 300.000 km/s (1.080.000.000 km/h), independentemente de quem a esteja observando, Albert Einstein, o cientista mais importante do século passado, introduziu o conceito de que o tempo e o espaço não são coisas distintas, mas formam uma unidade e não são apenas o palco no qual ocorrem os eventos da natureza, mas também os protagonistas dessa história.
 
Ao postular que a velocidade da luz é a velocidade limite do universo, Einstein demonstrou que o tempo depende da velocidade com a qual nos movemos. Quando nos aproximamos da velocidade da luz o tempo flui mais vagarosamente. Para entendermos melhor, imagine que estamos viajando para um planeta distante a dezenas de anos-luz da Terra (um ano-luz tem aproximadamente 10 trilhões de quilômetros) e que a viagem foi feita com uma velocidade bem próxima à da luz. Quando voltamos da viagem, para as pessoas que ficaram na Terra se passaram dezenas de anos, mas para quem viajou se passaram apenas alguns meses.
 
Aceleradores de partículas e GPS
 
Esse efeito, conhecido como dilatação temporal, é uma conseqüência do fato de a velocidade da luz ser uma constante universal. Ainda não podemos realizar a experiência descrita acima com seres humanos, mas algo similar já é realizado com partículas atômicas. As máquinas chamadas de aceleradores de partículas, que chegam a custar bilhões de dólares, aceleram prótons e elétrons para velocidades muito próximas à da luz.
 
Essas máquinas funcionam com altíssima precisão, pois levam em conta os efeitos de dilatação do tempo. Todos os experimentos realizados até hoje comprovaram que a teoria da relatividade está correta. Einstein mostrou ainda que a gravidade também altera a passagem do tempo. Relógios atômicos como os que existem nos satélites utilizados no sistema GPS (sistema de posicionamento global, na sigla em inglês), que trabalham com precisão maior do que um nanossegundo, são calibrados para levarem em conta as diferenças de campo gravitacional da Terra devido à variação da altura da órbita desses satélites.
 
Dessa forma, vemos que o tempo é relativo a quem está medindo e não existe um tempo universal. O tempo não é apenas uma impressão dos nossos sentidos ou uma invenção humana, mas realmente existe e faz parte da natureza. Um novo tempo foi descoberto pelo homem e todos os seus mistérios ainda não foram desvendados.
 
Adilson de Oliveira
 
Departamento de Física
 
Universidade Federal de São Carlos
 
21/07/2006
 

quinta-feira, 23 de abril de 2015



 

Ter, 02 de Dezembro de 2008 09:07
Por Paulo Urban
 
Quando morreu no Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa, vitimado por cirrose hepática, em 30 de novembro de 1935, Fernando Antônio Nogueira Pessoa era um nome quase por todos desconhecido. "I know not what tomorrow will bring" (Eu não sei o que o amanhã irá trazer); foi a última frase do poeta, escrita num pedaço de papel abandonado à beira do leito em que sofreu sua derradeira noite. Não tendo alcançado o sucesso financeiro nem abraçado carreira alguma de destaque, o familiar que na véspera o entregara ao médico, a ele se referiu como "um inútil".
 
Pessoa editara até então apenas um livro em português, Mensagem (dezembro, 1934), que lhe rendera um modesto segundo prêmio do Secretariado de Propaganda Nacional. Em que pese a publicação de Antinous and 33 Sonnets (1918), reeditado às custas do autor em três fascículos, em 1921, sob o título English Poems I, II e III, e algumas centenas de poemas e ensaios que o poeta fez circular em diversos jornais e revistas literárias de sua época, o fato é que por ocasião de sua morte, a grande maior parte dos exatos 27.543 textos em prosa e verso, também as milhares de cartas que compõem sua Obra, estavam inéditos. O espólio, à moda dos grandes tesouros, permaneceu durante décadas numa arca de madeira, cuja guarda foi confiada à Fundação Gulbenkian, e hoje encontra-se todo catalogado em pastas na Biblioteca Nacional de Lisboa.
 
Nascido aos 13 de junho de 1888, num simples apartado de Lisboa (4º andar - esquerdo, no Largo de São Carlos, nº 4), aos 6 anos o menino perderia o pai, o crítico musical Joaquim Seabra Pessoa. Sua mãe, Mª Madalena N. Pessoa, contrairia novas núpcias com João Miguel Rosa, que, nomeado cônsul em Durban (África do Sul) mudar-se-ia em 1896 para lá com a família, onde Pessoa, dos 7 aos 16 anos receberia a mais britânica educação. Quando, em 1905, retornou sozinho à cidade natal para cursar Letras (curso que abandonaria dali a dois anos) o poeta já havia lido Shakespeare, Milton, Byron, Shelley, Keats, Carlyle e Poe. Em Lisboa dedica-se ao estudo da filosofia clássica e contemporânea, encanta-se com a torrente de poetas portugueses desde Camões até Antônio Nobre, e passa a escrever prosa e poesia em português, inglês e francês, inicialmente sob influência baudeleriana e de todo o movimento simbolista. Pessoa sobrevive fazendo traduções literárias e assume a correspondência comercial de várias firmas estrangeiras, a constituir o ganha pão ao longo de sua modesta existência.
 
Sabidamente imenso foi seu interesse pelo ocultismo que, a propósito, é uma das chaves mestras sem a qual mal podemos acercar-nos dos intrincados enigmas e paradoxos que se encerram por toda sua Obra. "Há três caminhos para o oculto, diz Pessoa, o caminho mágico (...), extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve a transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os demais caminhos não têm".
 
A cosmovisão esotérica está tão presentemente perpassada pela Obra pessoana, e (re)vela-se por quase todos seus heterônimos, 72 ao todo, que resta impossível interpretar o poeta sem levarmos em conta sua afinidade visceral e filosófica com as questões fulcrais do hermetismo, incluindo aqui sua atração pelo movimento rosa-cruz, pela maçonaria (pela qual não somente se interessou como a defendeu publicamente) pela teosofia, pela alquimia e, sobretudo, pela astrologia, arte na qual foi profundamente versado. Curiosidade, raros sabem que Pessoa foi o responsável pela introdução do planeta Plutão, descoberto em 1930, nas cartas astrológicas. Santa sincronicidade! Plutão, deus do mundo inferior, é astro regente do ocultismo e de tudo aquilo que é velado, incluindo os conteúdos inconscientes; e é dotado de um caráter revolucionário profundo; nada mais justo, portanto, que entrasse para os anais da astrologia pela pena de um gênio poético que, adepto do mais sábio conhecimento esotérico, cumpriu a sina de revolucionar mais que a literatura inteira, toda uma época.
 
Em 1916, Pessoa pensava seriamente em estabelecer-se como astrólogo em Lisboa. Embora desistisse da idéia, seus estudos permitiram-lhe fazer considerações messiânicas a respeito do futuro literário e político de sua pátria, e uma de suas notáveis proezas foi prever acertadamente a Revolução dos Cravos, que se deu 4 décadas após sua morte. Pessoa legou-nos ainda um Tratado de Astrologia, assinado pelo sub-heterônimo Raphael Baldaya, que durante anos repousou intocado no citado baú, aguardando pelo oportuno momento em que foi descoberto.
 
Tal era a fama do poeta nessa área, que o mago inglês Aleister Crowley, ao receber das mãos de um editor londrino certas correções feitas por Pessoa em seu mapa astral, que vinham acompanhadas de uma cópia dos English Poems, não hesitou em alardear ao mundo que iria a Lisboa visitar o "maior astrólogo do mundo". A entrevista, a causar visível desconforto no poeta, que sempre preferiu a misantropia aos encontros sociais, deu-se em 2 de setembro de 1930. Um denso nevoeiro, porém, havia retido a embarcação Alcântara, atrasando em mais de um dia o desembarque de Crowley, que, tão logo viu Pessoa em terra, exprimiu-se mesclando o humor inglês a um tom de respeito: "Mas que idéia foi essa a sua de me mandar um nevoeiro lá de cima?".
 
Desse contato surgiria a versão para o português do Hino a Pã, poema de Crowley, que seria publicado na revista Presença em 1931, texto que serviu de inspiração para O Último Sortilégio, poesia ortônima pertencente ao Cancioneiro, cuja estranha particularidade, despercebida pelos críticos, é a de ser expressão de uma voz feminina, a própria anima do poeta, uma alma bruxa iniciada, que se revela essencialmente mística, enquanto se lamenta de si mesma ao ver diminuído seu dom de fazer imprecações e exortar os elementais da natureza. Acompanhemos partes do texto:
 
 
 
"Já repeti o antigo encantamento,
 
E a grande Deusa aos olhos se negou.
 
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
 
As orações cuja alma é um ser fecundo.
 
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
 
Só o vento volta onde estou toda e só,
 
E tudo dorme no confuso mundo.
 
 
 
Outrora meu condão fadava as sarças
 
E a minha evocação do solo erguia
 
Presenças concentradas das que esparsas
 
Dormem nas formas naturais das coisas.
 
Outrora a minha voz acontecia.
 
Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
 
E as folhas da floresta eram lustrosas".
 
 
 
A sacerdotisa desses versos, nas estrofes seguintes mostra-se perplexa, posto que sua varinha já não fala às existências essenciais, e queixa-se também de que uma vez traçado o círculo, nada acontece, em franca alusão às práticas de magia ritualística que o poeta bem devia conhecer e possivelmente praticar. Numa seqüência de imagens metafóricas, a protagonista ainda se assombra: "A música partiu-se de meu hino./Já meu furor não é divino/nem meu corpo pensado é já um deus". E mais adiante, admitindo sua impossibilidade de ora alcançar a transmutação que antes sabia operar, implora ao casal alquímico, ícones da transcendência que lhe escapa, a fim de que lhe dividam o corpo carnal, do qual seu ser essencial possa pleno libertar-se:
 
 
 
"Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
 
Tu, Lua, cuja prata converti,
 
Se já não podeis dar-me essa beleza
 
Que tantas vezes tive por querer,
 
Ao menos meu ser findo dividi -
 
Meu ser essencial se perca em si,
 
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!"
 
 
 
Também a disposição dos versos decassílabos heróicos, agrupados 7 a 7, a perfazer 70 sílabas poéticas por estrofe, permitem-nos suspeitar do não acaso desse requinte obsessivo de Pessoa, a insinuar aqui uma correspondência entre a seqüência de percepções que a bucólica feiticeira tem de seu tíbio estado anímico e os degraus da alquimia que devem ser galgados, passo a passo em direção à revelação que irá surgir, por meio de uma reviravolta de paradoxos (característica fundamental de toda a Obra pessoana) sobre vida e morte, ser e existência, que encerram com "nós de ouro" este poema:
 
 
 
"Converta-me a minha última magia
 
Numa estátua de mim em corpo vivo!
 
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
 
Anônima presença que se beija,
 
Carne do meu abstrato amor cativo,
 
Seja a morte de mim em que revivo,
 
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"
 
 
 
Estudos recentes têm se debruçado sobre questões que envolvem Pessoa, sua intrínseca relação com o ocultismo e suas possíveis aproximações com as chamadas Sociedades Secretas. "Não sou maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente"; escrevera o poeta em sua citada defesa da maçonaria, no Diário de Lisboa, de 4 de fevereiro de 1935. Ainda que a afirmação seja de todo verdadeira àquela altura, o fato é que Pessoa e Crowley haviam sido confrades da Golden Dawn, representante do rosacrucianismo britânico, "única filiação externa à qual Pessoa esteve ligado entre os anos 20 e 30, na qual conquistou todos os seus graus esotéricos, dela afastando-se em seguida por incompatibilidade mental e espírito de independência", segundo nos relata a historiadora Yvette Centeno, em seu Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, ed. Presença, Lisboa, 1985.
 
Outro historiador português, Vítor Manuel Adrião, autor de História Oculta de Portugal, ed. Madras, 2000; num de seus capítulos dedicados a destrinçar aspectos ocultos do grande gênio literário, apresenta-nos uma prova cabal ainda pouco conhecida: trata-se do Bilhete de Identidade de Fernando Pessoa, escrito pelo próprio, de 30 de março de 1935, há poucos anos catalogado. Nessa espécie de currículo mínimo com o qual o poeta pretendia apresentar-se e dar a conhecer em curtas linhas seu posicionamento filosófico, político e esotérico, diz de si mesmo: "Posição Iniciática: Iniciado, por comunicação direta de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal". Pessoa termina assim o documento: "Resumo de Estas Últimas Considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos: a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania".
 
Outra raridade pessoana é sua tradução de A Voz do Silêncio, de Mme. Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica, texto este de orientação budista, que a maga russa afirma ter recebido e decorado quando de sua peregrinação pelo Tibete, em cujos mistérios teria sido iniciada em 1870. Mas não pára aí a afinidade do poeta com o pensamento teosofista, visto que se preocupou em traduzir diversos volumes para a Coleção Teosófica e Esotérica, ed. Livraria Clássica, a partir de 1915. Compêndio de Teosofia, de C.W. Leadbeater e Annie Beasant, faz parte desta série.
 
A propósito, há quem veja em Iniciação, um dos mais conhecidos poemas do Cancioneiro, nítida alusão à concepção de Leadbeater de que o homem, antes de ser um corpo dotado de alma, é uma alma revestida por sete corpos, a saber: o físico, o emocional, o mental, o intuicional, o espiritual, o monádico e o divino. Complexidade da doutrina teosófica à parte, transcrevamos o hermético trabalho, escrito em redondilha maior:
 
 
 
Não dorme sob os ciprestes,
 
Pois não há sono no mundo.
 
..................................................
 
O corpo é sombra das vestes
 
Que encobrem teu ser profundo.
 
 
 
Vem a noite, que é a morte,
 
E a sombra acabou sem ser.
 
Vais na noite só recorte,
 
Igual a ti sem querer.
 
 
 
Mas na Estalagem do Assombro
 
Tiram-te os Anjos a capa:
 
Segues sem capa no ombro,
 
Com o pouco que te tapa.
 
 
 
Não tens vestes, não tens nada:
 
Tens só teu corpo, que és tu.
 
 
 
Por fim, na funda Caverna,
 
Os deuses despem-te mais,
 
Teu corpo cessa, alma externa,
 
Mas vês que são teus iguais.
 
..................................................
 
 
 
A sombra das tuas vestes
 
Ficou entre nós na Sorte.
 
Não 'stás morto, entre ciprestes.
 
....................................................
 
 
 
Neófito, não há morte.
 
Então Arcanjos da Estrada
 
Despem-te e deixam-te nu.
 
 
 
Segundo a teosofia, aos não iniciados, caberia no máximo atingir a consciência do 3º corpo, nada podendo ser-lhes revelado a respeito dos demais corpos que, embora igualmente nos revistam, somente seriam alcançados por uma consciência evoluída, capaz de experimentar estados de alma mais profundos.
 
Numa leitura esotérica, plenamente aceitável, a imagem poética parte do momento em que o neófito, aguardando entre ciprestes (alegoria da vida e de nossa natureza simples e terrena), é levado a sofrer gradativas mortes simbólicas, correspondentes ao sucessivo despojamento de suas vestes, até que, atingindo uma consciência mais profunda de si mesmo, possa reconhecer-se pleno entres seus pares iniciados.
 
Desde a morte física, anunciada nas estrofes de abertura, até a percepção última de que a morte é, sobretudo uma ilusão, passa o neófito pela Estalagem do Assombro, metáfora do transitório, onde os anjos retiram-lhe a capa emocional. Aprofundando-se, são os Arcanjos, superiores aos anjos na hierarquia celeste, que o deixam todo nu, isto é, despem-no do corpo mental, para que siga adiante, envolto pelo corpo intuicional, que será retirado na Caverna. Lá os deuses o obrigarão a despir-se mais, até ser-lhe possível, quando o corpo cessa, enxergar sua alma externa, de natureza espiritual ou monádica. O poema culmina quando o neófito se descobre iniciado, mesmo sem nunca ter deixado para trás o ponto de partida, entre ciprestes, do qual partiu. Dá-se conta então, porque já lhe caíram todas as vestes, de ser essencialmente divino, sem necessidade de temer a morte.
 
Particularmente, ao debruçar-me sobre o enigma da Obra pessoana, percebo que a leitura existencialista que os críticos reiteradamente insistem em fazer dos heterônimos todos, e particularmente do Cancioneiro, tal qual o gradativo despojar das vestes, fica muito aquém do que se pode vislumbrar por uma perspectiva esotérica, e não ultrapassa muitas vezes sequer a porta da Estalagem do Assombro. Esta, se nos assombra, cumpre fazê-lo porque a dimensão da poesia pessoana não cabe na palma da mão acadêmica. É preciso ter olhos iniciados para perscrutar o transcendente, elemento esse de verdades que Pessoa enuncia por seus paradoxos, e que intencionalmente deixa que escapem pelas frestas da imponderabilidade poética.
 
"Desejo ser um criador de mitos", exprimiu-se certa vez, "que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade". Pessoa o conseguiu; curvo-me, pois, diante da complexidade mitológica dos heterônimos, que têm realidade tanto quanto os deuses gregos. Neles se projeta a alma plural de Pessoa, a refratar sua identidade última, comum a todas as pessoas. "Porque há um mistério maior que Deus em tudo", e eu sou incapaz de compreendê-lo, embora os heterônimos nos falem sempre disso.
 
Ademais, nunca saberei outras coisas, nem mesmo sei o que o amanhã irá trazer...
 
Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento
 
Publicado na Revista Planeta nº 381 / junho 2004