domingo, 23 de fevereiro de 2014

A canção do africano


Castro Alves
 
A canção do africano

 

Lá na úmida senzala,

Sentado na estreita sala,

Junto ao braseiro, no chão,

Entoa o escravo o seu canto,

E ao cantar correm-lhe em pranto

Saudades do seu torrão ...

 

De um lado, uma negra escrava

Os olhos no filho crava,

Que tem no colo a embalar...

E à meia voz lá responde

Ao canto, e o filhinho esconde,

Talvez pra não o escutar!

 

"Minha terra é lá bem longe,

Das bandas de onde o sol vem;

Esta terra é mais bonita,

Mas à outra eu quero bem!

 

"0 sol faz lá tudo em fogo,

Faz em brasa toda a areia;

Ninguém sabe como é belo

Ver de tarde a papa-ceia!

 

"Aquelas terras tão grandes,

Tão compridas como o mar,

Com suas poucas palmeiras

Dão vontade de pensar ...

 

"Lá todos vivem felizes,

Todos dançam no terreiro;

A gente lá não se vende

Como aqui, só por dinheiro".

 

O escravo calou a fala,

Porque na úmida sala

O fogo estava a apagar;

E a escrava acabou seu canto,

Pra não acordar com o pranto

O seu filhinho a sonhar!

............................

 

O escravo então foi deitar-se,

Pois tinha de levantar-se

Bem antes do sol nascer,

E se tardasse, coitado,

Teria de ser surrado,

Pois bastava escravo ser.

 

E a cativa desgraçada

Deita seu filho, calada,

E põe-se triste a beijá-lo,

Talvez temendo que o dono

Não viesse, em meio do sono,

De seus braços arrancá-lo!

 

Castro Alves

Extraído do livro Os Escravos, de Castro Alves, item 2.

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