terça-feira, 13 de dezembro de 2011

MEDITE


MEDITE

Notícias do espírito de corpo



Ninguém perguntou, mas gostaria de dizer que estou bem, dentro do possível e dentro de um corpo que é um verdadeiro espírito de porco, capaz de ler o texto do Mestre Heitor Freire sobre sentimentos e descobrir que não tem vontade própria.



E quem diz isso e confirma é a classe médica. Tenho no cérebro a marca de uma isquemia, um insulto cerebral, sei lá, e nem senti. Meu coração sofreu um infarto sério, a marca está lá, e eu continuei em frente. Não tenho mais vesícula. Nem pedra nos rins. É possível que tenha vendido a alma. A sensação que sempre tive é que estou vivendo uma vida emprestada. Um dia eu devolvo.



Então os médicos que convenceram, com a ajuda da família, a fazer um Teste de Holter 24 horas. Como eu não sabia, suponho que pelo menos uma pessoa não saiba do que se trata. Pois consiste em um sistema utilizado para gravar o eletrocardiograma de um indivíduo por um período de 24 horas, durante suas atividades. É também conhecido como eletrocardiografia de longa duração, sistema Holter ou simplesmente Holter.



Os equipamentos utilizados são gravadores digitais com eletrodos descartáveis colocados no tórax do paciente e conectados ao gravador através de cabos. Ao término da gravação o registro é analisado em um analisador instalado em um computador adequado. Suas principais indicações são os diagnósticos de arritmias, arritmias paroxísticas, avaliação da eficácia da terapêutica antiarrítmica, avaliação do tônus autonômico e predição de eventos cardíacos através do estudo da variabilidade R-R e a detecção de alterações eletrocardiográficas do segmento ST, sugestivas de isquemia miocárdica. Tem mais, é chato, fico por aqui.



- Agora vê se sossega – pede a família para mim, dentro do elevador todo holterizado, com cabos, gravadores. – Descansa.



Pedi licença para ir até a esquina e saí pelas ruas como se tivesse sendo seguido pelo Google Earth ou monitorado como um preso com tornozeleiras eletrônicas com sinal GSM (igual à usada em celulares e de radiofrequência). Ou Osama Bin Laden. Isso: satélites, aviões espiões não-tripulados, um espião em cada bolso, cercado por todos os lados, eu era Osama Bin Laden, o próprio, mas invisível por causa da falta de barba e de cabelo.



Assim, a primeira medida de fuga foi correr atrás de ônibus, atravessar a Ponte Rio-Niterói, olhar para o cemitério de navios, e chegar ao centro do Rio de Janeiro. A minha nova personalidade osama tinha a mesma pilha da velha, logo fui direto para um sebo procurar livro sobre corpo. Encontrei um “Adeus ao corpo”, de um tal David Le Breton. Folheio. “O corpo é muitas vezes considerado pela tecnologia como um rascunho, senão no nível da espécie, pelo menos no nível do indivíduo, uma matéria-prima a ser arranjada de outra forma. Uns e outros afirmam o caráter disponível e provisório de um corpo sutilmente separado de si, mas colocado como o caminho para fabricar uma presença à altura da vontade de domínio dos atores.”



Gostei disso: domínio de atores. Eu sou um teatro. Um palco. Meu corpo é meu ator preferido, depois de Gene Kelly em “Dançando na chuva” ou Fred Astaire com Ginger Rogers, ou vice-versa.



“A medicina deixa de se preocupar somente com cuidar, justificando-se dos „sofrimentos‟ possíveis; ela intervém para dominar a vida, controlar os dados genéticos; ela tornou-se uma instância normativa, um biopoder (Foucault), uma forma científica e cruel de enunciação do destino”. (...) “O homem muda de natureza, torna-se Homo silicium”. Depois me explica melhor, Le Breton.



Comprei o livro e saí falando baixo comigo outro mesmo: “Por mim, tudo bem. Um dia ainda vou ser um Homo Sapiens”.



E fui pensando coisas vazias da Praça Tiradentes até a Cinelândia, onde, por puro atavismo, dei de cara com uma feira de livros.



Abri e fechei livros durante duas horas ou três, e saí com uma bolsa pesando dez quilos de cultura, inclusive o livro “O corpo e seus símbolos”, de Jean-Yves Leloup. “O primeiro passo, a primeira articulação, é aceitar a programação que nos foi dada por ocasião do nosso nascimento”. Quer dizer que não sou livre, nunca fui, Leloup? Qual é a tua, Leloup?



Arrasado, me arrastei com meus dez quilos de cultura e meus cabos, me sentindo um réptil inútil, e me larguei no Amarelinho. O garçom veio e com seu jeito de garçom robô me serviu uma caneca de vinho. Antes de beber conferi se tudo estava normal: o Municipal, a Câmara de Vereadores, a Biblioteca Nacional, os pombos confraternizando com os gatos, os pedintes pedindo, os vendedores de loteria oferecendo minha alforria, os engraxates engraxando, os paqueras paquerando, os funcionários públicos funcionando fora do horário.



Três canecas de vinho depois eu ainda estava dentro dos meus sapatos, mas minha cabeça se revoltava contra genes, biotecnologias, patentes de vida, a indústria da vida. Pedi uns pastéis, mas meu intestino, meu segundo cérebro com seus 100 trilhões de microorganismos que não me pertencem, não me disse nada.



Então ouvi: “O matematici, fate lume a tale errore! Lo spirito no ha voce, perché dov´è voce è corpo” (Ó matemáticos, lançai luz sobre tal erro! O espírito não tem voz, pois onde há voz há corpo”. Era o Leonardo, o Da Vinci, falando comigo através de um tal de Giorgio Agamben. “Valeu, Leonardo, meu espírito de porco agradece”.



Foi quando pararam todas as transmissões, deu um preto, depois um branco, e o Obama, orgulhoso, anunciou que tinha acabado comigo, Osama, no Paquistão. Alguns aplaudiram, alguns vaiaram. Ninguém explodiu.



Eu fiquei na minha. Pedi outra caneca e disse para mim, meus botões, cabos e gravador: “Osama, meu chapa, não esquenta. A verdade está no vinho. Saúde!”.



Irmão Francisco Maciel (GJMERJ)



Folha Maçônica Nº 295, 7 de maio de 2011

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