domingo, 23 de outubro de 2011

Baldwin IV, Rei de Jerusalém

Baldwin IV, Rei de Jerusalém











Baldwin IV, Rei de Jerusalém

Balduíno IV foi o último rei de Jerusalém com espírito de Cruzada. Guy de Lusignan, seu sucessor, foi um interesseiro, sob cujo reinado a Civilização Cristã perdeu a posse da Cidade Santa.

Na história das Cruzadas, nada é mais emocionante que o reinado doloroso de Balduíno IV. Nada, entre os vários exemplos famosos, pode atestar melhor o império de um espírito de ferro sobre uma carne débil. Foi um rei sublime, que os historiadores tratam só de passagem, o que faz perguntar por que até aqui nenhum escritor se inspirou nele, exceto talvez o velho poeta alemão Wolfram von Eschenbach. Nem o romance nem o teatro o evocam, entretanto sua breve existência cheia de acontecimentos coloridos forma uma apaixonante e dilacerante tragédia.

O destino sorria à sua infância. Robusto e belo, ele era dotado da inteligência aguçada de sua raça angeviana (de Anjou). Tinha sido dado a ele por preceptor Guilherme de Tyr, que se tornou de uma grande preocupação e dedicação, como é conveniente a um filho de rei. O pequeno Balduíno tinha muito boa memória, conhecia suficientemente as letras, retinha muitas histórias e as contava com prazer.

Um dia que brincava de batalha com os filhos dos barões de Jerusalém, descobriu-se que tinha os membros insensíveis: Os outros meninos gritavam quando eram feridos, porém Balduíno não se queixava. Este fato se repetiu em muitas ocasiões, a tal ponto que o arquidiácono Guilherme alarmou-se. Primeiro pensou que o menino fazia uma proeza para não se queixar. Então perguntou-lhe por que sofria aquelas lesões sem queixar-se. O pequeno respondeu que as crianças não o feriram, e ele não sentia em nada os arranhões. Então o mestre examinou seu braço e sua mão, e certificou-se de que estavam adormecidos. Era o sinal evidente da lepra, doença terrível e incurável naquele tempo.

Os médicos aos quais foi confiado não podiam sustar a infecção, nem, mesmo retardar a lenta decomposição que afetaria suas carnes. Toda sua vida não foi senão uma luta contra o mal irremissível. Mais ainda, muito mais: foi testemunho dos poderes de um homem sobre si mesmo e da encarnação assombrosa dos mais altos deveres. Balduíno IV foi um rei digno de são Luís, um santo, um homem enfim – e é isso, sobretudo, que importa à nossa admiração sem reticências – a quem nenhuma desgraça chegou a destruir o vigor de alma, as convicções, a altivez, as qualidades de coração, o senso das responsabilidades, dos quais ele hauria o revigoramento da coragem.

No fim de 1174, Saladino, senhor do Egito e de Damasco, veio sitiar Alepo. Os descendentes de Noradin pediram socorro aos francos. Raimundo de Trípoli atacou a praça forte de Homs e Balduíno IV empreendeu uma avançada vitoriosa sobre Damasco. Estas iniciativas fizeram com que Saladino abandonasse seu desejo inicial. Em 1176 o sultão voltou à carga, e a mesma manobra frustrou seus planos. Balduíno venceu seu exército de Damasco, em Andjar, e trouxe um belo lucro da expedição. Nesta ocasião ele tinha quinze anos.

Apesar de sua doença, cavalgava como um homem de armas, empunhando eximiamente a lança. Nenhum de seus predecessores teve tão cedo semelhante noção da dignidade real de que estava investido, e de sua própria utilidade. Percebendo as rivalidades existentes entre os que o cercavam, compreendeu quão necessária era sua presença à cabeça dos exércitos católicos. Mas que calvário deveria ser o seu! Aos sofrimentos físicos juntava-se a angústia moral: seu estado impedia-o de se casar, de ter um descendente. Ele não era senão um morto-vivo, um morto coroado, cujas pústulas e purulências se disfarçavam sob o ferro e a seda, mas que se mantinha de pé e se lançava à ação, movido não se sabe por que sopro milagroso, por que alta e devoradora chama de sacrifício.

Um novo cruzado – Filipe de Alsácia, conde de Flandres e parente próximo de Balduíno – acabava de desembarcar. O pequeno rei esperava muito desse apoio. Estava claro que era necessário ferir Saladino no coração de seu poderia – isto é, no Egito – se quisesse abalar a unidade muçulmana. Era isso, precisamente, o que propunha o basileus, o imperador de Bizâncio. O Egito, uma vez conquistado em parte, Damasco não poderia deixar de subtrair-se ao poder cambaleante de Saladino. Mas Filipe de Alsácia opinava de outra forma. Ninguém poderia impedi-lo de ir guerrear na Síria do Norte, e, o que era mais grave, de levar consigo parte do exército franco.

Saladino respondeu invadindo a Síria do Sul. Balduíno reuniu o que lhe restava da tropa, desguarneceu audaciosamente Jerusalém e partiu para Ascalon, onde Saladino investia. Este, logo que foi informado, subestimou seu adversário. Ele acreditava que a queda de Ascalon era uma questão de dias, e marchou sobre Jerusalém com o grosso de seu exército. Balduíno compreendeu suas intenções. Saiu de Ascalon, fez um longo périplo e caiu repentinamente sobre as colunas de Saladino, em Montgisard.


 
O efeito da surpresa não compensava a desproporção dos efetivos em luta, e Balduíno sentiu a hesitação dos seus. Desceu do cavalo, prosternou-se com o rosto na areia, diante do madeiro da verdadeira Cruz, que era levada pelo Bispo de Belém, e orou com a voz banhada de lágrimas. Com o coração convertido, seus soldados juraram não recuar, e considerariam traidor quem voltasse atrás. Rodeando o Santo Lenho, o esquadrão de trezentos cavaleiros se lançou impetuosamente. O vale entulhava-se com a bagagem do exército de Saladino – diz Le Livre dês Deux Jardins – os cavaleiros francos surgiam ágeis como lobos, latindo como cães. Atacavam em massa, ardentes como uma chama. E puseram em fuga o invencível Saladino. Se este salvou a pele, foi graças à rapidez de seu cavalo e ao devotamento de sua guarda. Retornou ao Egito, abandonando milhares de prisioneiros. Balduíno logrou, enfim, uma vitória sem precedentes.

No ano seguinte Balduíno edificou o Gué-de-Jacob, fortaleza destinada a defender a Galiléia dos ataques de Damasco. Guilherme de Tyr pretende que isso tenha sido feito pelas prementes solicitações de Odon de Saint-Amand, grão-mestre do Templo. Em todo caso, qualquer que tenha sido o inspirador da idéia, não há dúvida quanto à importância estratégica de Gué-de-Jacob.

Em 1179 Saladino invadiu a Galiléia. Balduíno foi ao seu encontro, tentando surpreendê-lo como tinha feito em Montgisard. Mas como os muçulmanos se contivessem, ele foi cercado e caiu prisioneiro. Muitos foram mortos e presos nesse dia. Pouco depois Saladino tomou Gué-de-Jacob e fez executar todos os templários que a defendiam.

Sybila, irmã do rei, acabava de casar — contrariamente aos interesses de Estado — com Guy de Lusignan, homem de beleza discutível, sem fortuna e sem talento. Balduíno, pressionado pelos seus, minado pela doença, tinha consentido nessa união e dado a Lusignan os condados de Jaffa e Ascalon. Tão logo a insignificância do marido de Sybila se manifestou, atiçaram-se as esperanças dos senhores feudais. Contava-se que o irmão de Lusignan, comentando o casamento, disse: “Se Guy for Rei, eu deveria ser Deus!” , tal mediocridade que lhe era atribuída.

O estado de Balduíno IV piorava dia a dia. Foi provação para sua mãe – que não tinha boa fama – e para a roda de seus cortesãos ambiciosos e amorais, ver a aproximação de Balduíno com Raimundo de Trípoli, único homem capaz de o aconselhar sabiamente.

Nesse momento reapareceu, libertado dos cárceres muçulmanos, o antigo príncipe de Antioquia, Renaud de Châtillon. Logo recomeçou suas aventuras, assaltando uma importante caravana de peregrinos com destino a Meca. Esse ato rompia a trégua assinada por Balduíno IV e Saladino e ofendia as convicções religiosas dos muçulmanos, a cujos olhos o atentado afigurava-se monstruoso. Intimado pelo rei a devolver os prisioneiros e o produto da pilhagem, ele recusou-se com arrogância, tornando assim evidente a incapacidade do doente de se fazer obedecer.

Imediatamente Saladino acorreu do Egito e invadiu a Galiléia, incendiando e devastando as colheitas, capturando rebanhos e semeando pânico por toda parte. Renaud de Châtillon suplicou ao rei que salvasse seus feudos. Balduíno concedeu, vencendo Saladino em julho de 1182.

Em agosto, o infatigável maometano tentou tomar Beyrouth por uma ação combinada por terra e mar. Uma vez mais Balduíno afastou o perigo. Impediu Saladino de se apoderar de Alepo e conduziu uma expedição até os subúrbios de Damasco. Assim, por toda parte, graças à sua energia sobre-humana, e ainda que daí em diante ele se fizesse carregar em liteira para as batalhas, o heróico leproso levava vantagem sobre o genial muçulmano.

Ele começava entretanto a perder a vista, a não poder mais se servir de seus membros. Os que lhe eram mais chegados o pressionavam a abandonar os afazeres do reinado, ou ao menos passar parte de suas responsabilidades a Guy de Lusignan. Pode-se bem imaginar o drama interior desse rei de 22 anos, corroído por úlceras, semi-paralisado e quase cego, cercado pelas sombras da desconfiança e dos maus pressentimentos, atormentado de um lado pelas insinuações e sugestões pérfidas dos seus, e de outro pela alta idéia que ele fazia de sua missão de rei. Se a lepra o enfraquecia, se ele não podia ter esperanças de se curar, sempre, entretanto, encontrava novas forças e resistia da melhor forma às ciladas da camarilha.

Como a doença entrasse numa fase evolutiva, ele devia lutar contra ela, e sobretudo contra a tentação de abandonar tudo para morrer em paz. Foi num desses períodos que ele consentiu, se bem que a contragosto, em investir Guy de Lusignan na regência do reino. No primeiro encontro com Saladino, Lusignan deixou o exército franco ser massacrado. Recusou com altivez prestar contas a Balduíno IV, que o destituiu de seu cargo. Para evitar que, pela complacência de Sybila, Lusignan se tornasse rei de Jerusalém após sua morte, designou seu sucessor o pequeno Balduíno V, filho de Guilherme “Longue Epée”. Como a situação da Terra Santa estivesse desesperadora, ele enviou uma embaixada ao Ocidente, composta pelo Patriarca de Jerusalém, pelo Mestre do Hospital e pelo Mestre do Templo, o velho Arnaud de Torrage.

Renaud de Châtillon, que indiretamente tinha ajudado o rei a se desembaraçar de Lusignan, achou-se autorizado a retomar suas pilhagens, agora na mais alta escala. Armou uma frota, que foi transportada ao Mar Vermelho em dorso de camelo. Devastando portos, interceptando comboios, essa frota ameaçou por algum tempo o caminho para Meca. Saladino, excitado até o cúmulo do furor, destruiu os navios de Renaud e depois sitiou-o em sua própria fortaleza, o Krac de Moab. Balduíno IV reapareceu, agonizando em sua liteira, para lhe fazer frente. Saladino retirou-se.

O último ato de Balduíno IV foi o de reunir em São João d’Acre o parlamento de seus barões. Guy de Lusignan, incapaz e rebelde, foi então oficialmente afastado do trono, e – o que não era senão justiça e sabedoria – a regência foi confiada a Raimundo de Trípoli.

Mais tarde, a 13 de março de 1185, o mártir rendeu sua alma a Deus, em presença de seus vassalos, dignitários e bons companheiros de guerra. Até os infiéis lhe tributaram homenagens.



Fonte: Georges Bordonove, “Les Templiers”, in “Catolicismo” nº 303



Um comentário:

  1. muito boa informacao, eu estava procurando alguma coisa sobre essa persoldade historica, por causa de um filme que assisti e so encontrei aqui, muito obrigado ,.

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