quarta-feira, 16 de abril de 2014

A LEGALIDADE SERVIL





A LEGALIDADE SERVIL

 

Lição de um mestre, oferecida à reflexão dos obstinados.

 

O escravismo fala atualmente contra a reforma a mesma linguagem com que a Idade Média se opunha à filosofia de cujo seio saiu a revolução e a sociedade moderna. A nossa posição hoje, porém, é duplamente vantajosa. A tirania exercida pela nobreza feudal era um privilégio; mas esse privilégio estribava em foros legais. Com o cativeiro entre nós não sucede o mesmo: é um privilégio o direito dos senhores, mas um privilégio ilegal. Já o demonstramos.

 

Demos, todavia, a sua legalidade. Ainda assim, basta essa condição, para que ele se sinta sobranceiro à reforma e apoiado no direito? Não. Acima do direito formal, da legalidade estrita, existe um direito, mais positivo do que esse, porque é, a um tempo, mais legítimo e mais forte: o direito que resulta do desenvolvimento humano.

 

Há, entre os nossos adversários muita gente que, uns por obcecação e interesse, outros por ignorância e boa-fé, revestem-se de toda a gravidade da ciência jurídica, e olham com desprezo, como profissionais a leigos, os partidários da abolição. Pois enganam-se esses senhores. Não somos tão profanos, nem eles tão jurisconsultos, quanto presumem.

 

Os abolicionistas não são nenhuns apóstolos de uma aspiração ideal, devotos de uma utopia, revolucionadores do direito. É no direito, cientificamente real, da nossa época e da nossa nacionalidade que nos firmamos contra a legalidade caduca do cativeiro.

Sorriam embora de desdém os Tribonianos do escravismo. Não havemos de ficar sem padrinho e fiador; e, para evitar exceções, iremos buscá-lo na terra clássica da jurisprudência científica e do direito histórico, na grande Alemanha, a alma mater de todos os jurisconsultos.

Entre os homens que, daquele cimo iluminado, derramam sobre o mundo o verbo da ciência jurídica, sobressai, nos primeiros lugares, como um dos pontífices desse magistério supremo, o professor Holtzendorff.

Os livros desse jurisconsulto, desse civilista, desse criminalista, desse publicista extraordinário têm impressionado profundamente a Europa com a seriedade, a originalidade e a superioridade do seu ensino.

 

De uma recentíssima obra, Princípios de Política, ainda não vertida em idioma algum, do autor da Enciclopédia Jurídica — extraímos hoje um capítulo, que parece escrito para os escravistas pertinazes de nossa terra.

Ouçamos Holtzendorff:

“O único expediente regular (para revogar uma lei que não se acha de acordo com as necessidades de uma nação) é o remédio que pode provir do Poder Legislativo. Mas que cumprirá fazer, quando esse poder permaneça inativo, porque as classes dominantes sejam interessadas na conservação dos abusos? Quando, descuidado dos seus deveres e por própria comodidade, proceda parcialmente? E principalmente quando deixe de dar o remédio legal reclamado, por denegarem o seu assentimento os que devem participar na reforma?

“A resposta é simples. Se o tino do juiz ou do público, como frequentemente sucede, eludir a aplicação da lei, então desaparece o mal. Pelo contrário, é iminente o perigo, quando os grandes aparelhos da vida do Estado obstam a esse meio paliativo. Nesta alternativa, a política, sem hesitar, deve infringir a lei e, em lugar da injustiça legal, fazer imperar como lei o direito acomodado às necessidades sociais.

 

“Dada a hipótese que acabamos de definir, não vem absolutamente ao caso desculpar a violência contra a lei positiva; é, ao invés, indispensável reconhecer nesse procedimento uma necessidade moral, um dever, a que povos e governos são obrigados a obedecer. Por maior que seja o valor da lei, sob o ponto de vista formal, é apenas relativo, e nunca absoluto.

Ninguém se preocupe com o receio de que o arbítrio possa explorar este princípio em interesse seu, e abusar dele. Uma lei que se torna incorrigível e irrevogável, por isso mesmo que interrompe o desenvolvimento histórico do direito, e obsta que se empregue o remédio legal para corrigir-lhe o dano, deve ser posta fora do terreno do direito.

 

“As condições políticas atuais do Mecklemburgo demonstram que as classes privilegiadas, confiando em um pretenso direito histórico, quase sempre deixam escapar as melhores ocasiões de iniciar medidas de maior prudência.

“A história do direito público está repleta de aplicações do princípio que estabelecemos. A violação formal da lei é necessária e moralmente justificada, sempre que as classes

privilegiadas recusam o seu concurso, legalmente preciso, para a abolição dos próprios privilégios, na ocasião em que o pensamento da igualdade pessoal penetra as classes oprimidas, ou a segurança do Estado é ameaçada por esses privilégios. A abolição violenta da escravidão, da servidão e da adscrição à gleba sem indenização, bem como a extinção dos antigos feudos pela monarquia absoluta, foram imposições da justiça histórica.”

 

Ora, depois desta lição, deixem-me acreditar que a lavoura brasileira, se quiser refletir no assunto, bem pode mandar a ciência jurídica da resistência escravista, pregada pelos Srs. Paulino de Sousa e Andrade Figueira, para as coleções de fósseis, ou os museus de múmias.

GREY.

Jornal do Commercio, 4 de março de 1885.

Publicações a pedido.

Extraído de “OBRAS SELETAS” – VOLUME 6

Rui Barbosa
 
 

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