domingo, 17 de setembro de 2017


A Passagem de Richet

 

O Senhor tomou lugar no tribunal da sua justiça e, examinando os documentos que se referiam ás atividades das personalidades eminentes sobre a Terra, chamou o Anjo da Morte, exclamando:

Nos meados do século findo, partiram daqui diversos servidores da Ciência que prometeram trabalhar em meu nome no orbe terráqueo, levantando a moral dos homens e suavizando-lhes as lutas. Alguns já regressaram, enobrecidos nas ações dignificadoras, nesse mundo longínquo. Outros, porém, desviaram-se dos seus deveres e outros ainda lá permanecem, no turbilhão das duvidas e das descrenças, laborando no estudo.

“Lembras-te daquele que era aqui um inquieto investigador, com as suas analises incessantes, e que se comprometeu a servir os ideais da Imortalidade, adquirindo a fé que sempre lhe faltou?

— “Senhor aludis a Charles Richet, reencarnado em Paris, em 1850, e que escolheu uma notabilidade da medicina para lhe servir de pai?”.

— “Justamente. Pelas noticias dos meus emissários, apesar da sua sinceridade e da sua nobreza, Richet não conseguiu adquirir os elementos de religiosidade que fora buscar, em favor do seu próximo. Tens conhecimento dos favores que o Céu lhe tem adjudicado, no transcurso da sua existência?”.

— “Tenho, Senhor. Todos os vossos mensageiros lhe cercaram a inteligência e a honestidade com o halo da vossa sabedoria. Desde os primórdios das suas lutas na Terra, os Gênios da Imensidade o rodeiam com o sopro divino de suas inspirações. Dessa assistência constante lhe nasceram os poderes intelectuais, tão cedo revelados no mundo. Sua passagem pelas academias da Terra, que serviu para excitar a potencia vibratória da sua mente, em favor da ressurreição do seu tesouro de conhecimentos, foi acompanhada pelos vossos emissários com especial carinho. Ainda na mocidade, lecionou na Faculdade de Medicina, obtendo a cadeira de Fisiologia. Nesse tempo, já seu nome, com os vossos auxílios, estava cercado de admiração e respeito. As suas produções granjearam-lhe a veneração e a simpatia dos seus contemporâneos. De 1877 a 1884, publicou estudos notáveis sobre a circulação do sangue, sobre a sensibilidade, sobre a estrutura das circunvoluções celebrais, sobre a fisiologia dos músculos e dos nervos, perquirindo os problemas graves do ser, investigando no circulo de todas as atividades humanas, conquistando o seu nome a admiração universal.”

— “E em matéria de espiritualidade, replicou austeramente o Senhor, que lhe deram os meus emissários e de que forma retribuiu o seu espírito a essas dádivas?”.

— “Nesse particular, exclamou solicito o Anjo, muito lhe foi dado. Quando deixastes cair, mais intensamente, a vossa luz sobre os mistérios que me envolvem, ele foi dos primeiros a receber-lhe os raios fulgurantes. Em Carqueiranne, em Milão e na ilha Roubaud, muitas claridades o bafejaram, junto de Eusapia Paladino, quando o seu gênio se entregava a observações positivas, com os seus colegas Lodge, Myers e Sidwick. De outras vezes, com Delanne, analisou as celebres experiências de Alger, que revolucionaram os ambientes intelectuais e materialistas da França, que então representava o cérebro da civilização ocidental.

“Todos os portadores das vossas graças levaram as sementes da Verdade á sua poderosa organização FÍSICA, apelando para o seu coração, afim de que cite afirmasse as realidades da sobrevivência; povoaram-lhe as noites de severas meditações, com as imagens maravilhosas das vossas verdades, porém, apenas conseguiram que ele escrevesse o Tratado de Metapsíquica e um estudo proveitoso, a favor da concórdia humana, que lhe valeu o Premio Nobel da Paz, em 1913.

“Os mestres espirituais não desanimaram, nem descansaram nunca em torno da sua individualidade; mas, apesar de todos os esforços despendidos, Rechia viu, nas expressões fenomenológicas de que foi atento observador, apenas a exteriorizarão das possibilidades de um sexto sentido nos organismos humanos. Ele que fora o primeiro organizador de um dicionário de fisiologia, não se resignou a ir além das demonstrações histológicas. Dentro da espiritualidade, todos os seus trabalhos de investigador se caracterizam pela duvida que lhe martiriza a personalidade. Nunca pode, Senhor, encarar as verdades imortalistas, senão como hipótese, mas o seu coração é generoso e sincero. Ultimamente, nas reflexões da velhice, o grande lutador se veio inclinando para a fé, até hoje inaccessível ao seu entendimento de estudioso. Os vossos mensageiros conseguiram inspirar-lhe um trabalho profundo, que apareceu no planeta como “A Grande Esperança” e, nestes últimos dias, a sua formosa inteligência realizou para o mundo uma mensagem entusiástica, em prol dos estudos espiritualistas.

— “Pois bem, exclamou o Senhor, Richet terá de voltar agora a penates. Traze de novo aqui a sua individualidade, para as necessárias interpelações.”.

— “Senhor, assim tão depressa? — retornou o Anjo, advogando a causa do grande cientista — O mundo vê em Richet um dos seus gênios mais poderosos, guardando nele sua esperança. Não conviria protelar a sua permanência na Terra, afim de que ele vos servisse, servindo á Humanidade?”.

— “Não — disse o Senhor tristemente. — Se, após oitenta e cinco anos de existência sobre a face da Terra, não pode reconhecer, com a sua ciência, a certeza da Imortalidade, é desnecessária a continuação de sua estadia nesse mundo. Como recompensa aos seus esforços honestos em beneficio dos seus irmãos em humanidade, quero dar-lhe agora, com o poder do meu amor, á centelha divina da crença, que a ciência planetária jamais lhe concedeu, nos seus labores ingratos e frios.”.

 

*

 

No leito de morte, Richet tem as pálpebras cerradas e o corpo na posição derradeira, em caminho da sepultura. Seu espírito inquieto de investigador não dormiu o grande sono.

Há ali, cercando-lhe os despojos, uma multidão de fantasmas.

Gabriel Delanne estende-lhe os braços de amigo. Denis e Flammarion o contemplam com bondade e carinho. Personalidades eminentes da França antiga, velhos colaboradoras da “Revista dos Mundos” cooperadores devotados dos “Anais das Ciência Físicas” ali estão, para abraçarem o mestre no limiar do seu tumulo.

Richet abre os olhos para as realidades espirituais que lhe eram desconhecidas. Parece-lhe haver retrocedido ás materializações da Vila Carmem; mas, ao seu lado, repousam os seus despojos, cheios de detalhes anatômicos. O eminente fisiologista reconhece-se no mundo dos verdadeiros vivos. Suas percepções estão intensificadas, sua personalidade é a mesma e, no momento em que volve a atenção para a atitude carinhosa dos que o rodeiam, ouve uma voz suave e profunda falando do Infinito:

— “Richet, exclama o Senhor no tribunal da sua misericórdia, porque não afirmaste a Imortalidade, e porque desconheceste o meu nome no teu apostolado de missionário da ciência e do labor? Abri todas as portas de ouro que te poderia reservar sobre o mundo. Perquiriste todos os livros. Aprendeste e ensinaste, fundaste sistemas novos do pensamento, á base das duvidas dissolventes. Oitenta e cinco anos se passaram, esperando eu que a tua honestidade me reconhecesse, sem que a fé desabrochasse em teu coração... Todavia, decifraste, com o teu esforço abençoado, muitos enigmas dolorosos da ciência do mundo e todos os teus dias representaram uma sede grandiosa de conhecimentos... Mas, eis, meu filho, onde a tua razão positiva é inferior á revelação divina da fé. Experimentaste as torturas da morte com todos os teus livros e diante dela desapareceram os teus compêndios, ricos de experimentações no campo das filosofias e das ciências. E agora, premiando os teus labores, eu te concedo os tesouros da fé que te faltou, na dolorosa estrada do mundo!”.

Sobre o peito do abnegado apostolo, desce do Céu um punhal de luz opalina, como um vernábulo maravilhoso de luar indescritível.

Richet sente o coração tocado de luminosidade infinita e misericordiosa, que as ciência nunca lhe haviam dado. Seus olhos são duas fontes abundantes de lagrimas de reconhecimento ao Senhor. Seus lábios, como se voltassem a ser os lábios de um menino recitam o “Pai Nosso que estais no Céu...”.

Formas luminosas e aéreas arrebatam-no, pela estrada de Eder da eternidade e, entre prantos de gratidão e de alegria, o apostolo da ciência caminhou da grande esperança para a certeza divina da Imortalidade.

Humberto de Campos

(Recebida em Pedro Leopoldo, 21 de janeiro de 1936).

 

Francisco Cândido Xavier

Humberto de Campos

Palavras do Infinito

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