domingo, 14 de abril de 2013

O resgate da categoria “espírito”, por Leonardo Boff*


Leonardo Boff

O resgate da categoria “espírito”, por Leonardo Boff*


Na cultura atual, a palavra “espírito” é desmoralizada em duas frentes: na cultura letrada e na cultura popular. Na cultura letrada dominante, “espírito” é o que se opõe à matéria. Matéria, sabemos mais ou menos o que é, pois pode ser medida, pesada, manipulada e transformada, enquanto “espírito” cai no campo do intangível, indefinido e até nebuloso.



Os valores espirituais, na acepção moderna convencional, situam-se na superestrutura e não cabem nos esquemas científicos. Seu lugar é o mundo da subjetividade, entregue ao arbítrio de cada um ou a grupos religiosos. Em razão disso, a expressão “valores espirituais” surge com mais frequência na boca de padres e de bispos de viés conservador.



Mas com os escândalos havidos nos últimos tempos com os padres pedófilos e com os escândalos financeiros ligados ao Banco do Vaticano, o discurso dos valores espirituais se desmoralizou.



Na cultura popular, a palavra “espírito” possui grande vigência. Traduz certa concepção mágica do mundo à revelia da racionalidade aprendida na escola. Para grande parte do povo, o mundo é habitado por bons e maus espíritos que afetam as distintas situações da vida. O espiritismo codificou esta visão de mundo pela via da reencarnação. Possui mais adeptos do que se suspeita.



No entanto, nos últimos decênios, nos demos conta de que o excesso de racionalidade e o consumismo exacerbado geraram saturação existencial e também decepção. A felicidade não se encontra na materialidade das coisas, mas em dimensões ligadas ao coração.



Por toda parte, buscam-se experiências espirituais novas, quer dizer, sentidos de vida que vão além dos interesses imediatos e da luta cotidiana pela vida. Numa sociedade de mercado, a religião e a espiritualidade se transformaram em mercadorias à disposição do consumo.



Não obstante a referida mercantilização do religioso, o mundo espiritual começou a ganhar fascínio, embora, na maioria das vezes, na forma de esoterismo e de literatura de autoajuda. Mesmo assim, ele abriu uma brecha na profanidade do mundo e no caráter cinzento da sociedade de massa. Estes fenômenos supõem um resgate da categoria “espírito” num sentido positivo e até antissistêmico. O “espírito” constitui uma referência consistente e não mais colocada sob suspeita pela crítica da modernidade, que somente aceitava o que passava pelo crivo da razão. Ocorre que a razão não é tudo, nem explica tudo. O espírito não se recusa à razão, antes, precisa dela. Mas vai além, englobando-a num patamar mais alto, que tem a ver com a inteligência, a contemplação e o sentido superior da vida e da história.


Leonardo Boff



*teólogo, professor e membro da Comissão da Carta da Terra


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