terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Não queiras para os outros o que não queres para ti.

FOME: A vergonha que atesta a fragilidade espiritual da Humanidade.
Não queiras para os outros o que não queres para ti.



Entre os lavradores e viajantes da Catalunha, o nome de Ferreol era muito temido. Nas noites de tempestade, quando a água bate com fúria nas rochas, o bandido Ferreol e seus companheiros aguardavam em seus postos, para assaltar qualquer infeliz e roubar-lhe a bolsa, e quiçá deixá-lo estendido sem vida em um matagal.

Por toda parte se narravam as façanhas do bando, que levava o terror a todos os que tinham que passar pelos montes e bosques, lugares preferidos de Ferreol e seus companheiros.

Um dia, ao pôr-do-sol, quando o crepúsculo enchia de sombras as proximidades das montanhas, um frade caminhava a passos largos. Ia rezando com devoção suas orações, e não percebeu a aparição de dois homens no meio do caminho. Estes pararam o bom religioso, dizendo-lhe:
— Irmão, passe-nos a bolsa!

O frade, surpreendido, lhes respondeu que não levava nada consigo.

Bandidos como eram, o conduziram então, com os olhos vendados, à cova onde o bando estava reunido. Ferreol, sentado junto ao fogo, entretinha-se em afiar com grande cuidado sua adaga. Os bandidos tiveram grande surpresa com a chegada de seus companheiros e do frade. Ferreol, com o intento de zombar do padre, lhe disse:

— Há muito que desejo me confessar, e agora vejo uma oportunidade. O senhor vai me confessar, reverendo padre, mas tende em conta que espero vossa absolvição. Se não for assim, podeis encomendar-vos a todos os santos, pois não saireis vivo desta caverna.

O frade, tranqüilamente, lhe disse que estava disposto a ouvi-lo em confissão.
— Mas sou Ferreol, o bandido — disse o chefe. — Não tendes ouvido falar de mim?
— Não importa. Vem aqui comigo, e eu te absolverei.
Retiraram-se a um canto da caverna, e terminada a confissão o frade disse a Ferreol:
— Agora vou dar-te a penitência. Antes de qualquer assalto, repete isto e pensa bem nisto: não queiras para os outros o que não queres para ti. E isto te bastará.
Soltando uma estrondosa gargalhada, Ferreol disse:
— Se essa é a penitência, não é demasiado dura. Agora deveis sair daqui depressa, antes que eu me arrependa e vos mate.
O frade saiu. Ferreol continuou afiando sua adaga, e os seus companheiros continuaram bebendo, jogando ou roncando. No entanto, as palavras do frade não haviam caído em terreno pedregoso.

Alguns dias depois, dispunha-se Ferreol a dar assalto a uma carroça que ia a uma cidade vizinha, onde se celebrava uma festa. Colocaram-se os bandidos como de costume, alguns no alto de um monte, para avisar a chegada da gente, e os demais ocultos na floresta, entre as ramas de frondosas árvores. Até que o assobio de um sentinela os avisou, e então se esconderam.
Pelo caminho, puxando um burrinho, vinha um homem com sua esposa e um menino nos braços.
— Boa presa! — pensaram todos.


Já estavam preparados para assaltar, ao sinal de Ferreol, quando viram com surpresa que o sinal não fora dado. Passou a família, e desapareceu atrás de uma curva do caminho. Tudo ficou em silêncio, e os bandidos foram lentamente se incorporando, se aproximando de Ferreol, e lhe perguntaram a causa de não haver ordenado o ataque.
O chefe se mostrava pensativo. Não contestou as reclamações de seus subordinados, mas com receio, disse:
— Não sei... não me pareceu conveniente. Agora voltemos à caverna.

Desde aquele dia Ferreol sempre agia assim. Preparava-se o assalto, mas na última hora não o executava. E já os bandidos murmuravam, acreditando que seu capitão havia enlouquecido ou sido atacado por algum mal súbito, pois não mais falava com eles, e passava largas horas melancolicamente passeando pelos bosques ou na cova, isolado da algazarra dos demais. Até que um dia eles resolveram roubar uma mansão, e Ferreol negou-se a ir.

— Pensem se gostariam que fizessem isso com vocês. O que não queremos para nós, não devemos querê-lo para os outros.
Os bandidos ficaram estupefatos. Logo um coro de brutais gargalhadas estalou:
— Ah! Ferreol virou São Ferreol! Viraste frade e santo!

E passando dos risos para as ameaças, e destas para os fatos, o golpearam, e por fim o mataram. Levaram o cadáver com eles à mansão que iriam assaltar, e o esconderam na adega.

Desta maneira, Ferreol, que havia meditado sobre as palavras daquele frade, cumpriu a penitência de que tão impiamente zombara.

Passou o tempo, e o dono da mansão que os bandidos haviam roubado notou com surpresa, ao tirar o vinho de um certo tonel, que esse havia melhorado em qualidade de uma maneira notável, estando com um sabor agradabilíssimo. E além disso o tonel estava sempre cheio. Sem encontrar uma explicação, removeu um dia o tonel.

Grande foi a surpresa ao encontrar atrás do tonel o corpo de Ferreol, que estava ainda fresco e com as feridas ainda sangrando, como se acabasse de morrer.

Compreenderam que um grande milagre havia ocorrido, e desde então São Ferreol recebeu culto e devoção.




– De V. Garcia de Diego, "Antología de Leyendas de la Literatura Universal" - Labor, Madrid, 1953)

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