domingo, 27 de outubro de 2013

Vozes da África



 
VOZES D’ÁFRICA

 

Deus! ó Deus onde estás que não respondes?

Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes

Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te mandei meu grito,

Que embalde, desde então, corre o infinito...

Onde estás, Senhor Deus?...

 

Qual Prometeu tu me amarraste um dia

Do deserto na rubra penedia,

— Infinito: galé!...

Por abutre — me deste o Sol candente,

E a terra de Suez — foi a corrente

Que me ligaste ao pé...

 

O cavalo estafado do Beduíno

Sob a vergasta tomba ressupino,

E morre no areal.

Minha garupa sangra, a dor poreja,

Quando o chicote do simoun dardeja

O teu braço eternal.

 

Minhas irmãs são belas, são ditosas...

Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas

Dos harens do Sultão.

Ou no dorso dos brancos elefantes

Embala-se coberta de brilhantes

Nas plagas do Hindustão.

 

Por tenda tem os cimos do Himalaia...

O Ganges amoroso beija a praia

Coberta de corais...

A brisa de Misora o céu inflama;

E ela dorme nos templos do Deus Brama,

— Pagodes colossais...

 

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...

A mulher deslumbrante e caprichosa,

Rainha e cortesã.

Artista — corta o mármor de Carrara;

Poetisa — tange os hinos de Ferrara,

No glorioso afã!...

 

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...

Ora uma c’rôa, ora o barrete frígio

Enflora-lhe a cerviz.

O Universo após ela — doudo amante —

Segue cativo o passo delirante

Da grande meretriz.

 

 

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada

Em meio das areias esgarrada,

Perdida marcho em vão!

Se choro... bebe o pranto a areia ardente;

Talvez... p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!

Não descubras no chão...

 

E nem tenho uma sombra na floresta...

Para cobrir-me nem um templo resta

No solo abrasador...

Quando subo às pirâmides do Egito,

Embalde aos quatro céus chorando grito:

“Abriga-me, Senhor!...”

 

Como o profeta em cinza a fronte envolve,

Velo a cabeça no areal, que volve

O siroco feroz...

Quando eu passo no Saara amortalhada...

Ai! dizem: “Lá vai África embuçada

No seu branco Albornoz...”

 

Nem vêem que o deserto é meu sudário

Que o silêncio campeia solitário

Por sobre o peito meu.

Lá no solo onde o cardo apenas medra

Boceja o Esfinge colossal de pedra

Fitando o morno céu.

 

De Tebas nas colunas derrocadas

As cegonhas espiam debruçadas

O horizonte sem fim

Onde branqueja a caravana errante

E o camelo monótono, arquejante

Que desce de Efrain...

 

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!

É, pois, teu peito eterno, inexaurível

De vingança e rancor?...

E que é que fiz senhor? que torvo crime

Eu cometi jamais que assim me oprime

Teu gládio vingador?!...

 

Foi depois do Diluvio... Um viandante,

Negro, sombrio, pálido, arquejante,

Descia do Arará...

E eu disse ao peregrino fulminado:

“Cão!... serás meu esposo bem amado...

— Serei tua Eloá...”

 

Deste este dia o vento da desgraça

Por meus cabelos ululando passa

O Anátema cruel.

As tribos erram do areal nas vagas

E o nômada faminto corta as plagas

No rápido corcel.

 

Vi a ciência desertar do Egito...

Vi meu povo seguir — judeu maldito —

Trilho da perdição.

Depois vi minha prole desgraçada

Pelas garras d'Europa — arrebatada —

Amestrado falcão!...

 

Cristo! embalde morreste sobre um monte...

Teu sangue não lavou da minha fonte

A mancha original.

Ainda hoje são, por fado adverso,

Meus filhos — alimária do universo,

Eu — pasto universal...

 

Hoje em meu sangue a América se nutre

— Condor que transforma-se em abutre

Ave da escravidão,

Ela juntou-se às mais... irmã traidora

Qual de José os vi irmãos outrora

Venderam seu irmão.

 

Basta, senhor! De teu potente braço

Role através dos astros e do espaço

Perdão p'ra os crimes meus!...

Há dois mil anos... eu soluço um grito...

Escuta o brado meu lá no infinito

Meu Deus! Senhor, meu Deus!...

 

Castro Alves

S. Paulo, 11 de junho de 1868

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