quarta-feira, 10 de julho de 2013

Resultado de um encontro


 
 
 

Capítulo VII 
 
Resultado de um Encontro
 
O banho da mulher tem sido, através da história, o espetáculo mais atrativo e sedutor. Davi enamorou-se perdidamente de Bethsabéa ao vê-la no banho. Suzana, nua, quando se banhava, seduziu dois anciãos. Imrou e lKais, o pai da poesia árabe, deixou sua tribo e seguiu sua prima, depois de vê-la no banho. E Friné ia ser condenada à morte, quando Péricles, o seu notável advogado, pô-la nua, na frente dos seus juízes, recebendo, então, em troca, a concessão de viver. Na Europa, a nudez é coisa muito natural e isso tem dado à arte um grande incremento; porém, no Oriente é impossível. Há, na Síria e no Líbano, escritores e poetas que são pérolas valiosas na coroa da Literatura; músicos que constituem gemas preciosas, que adornam a fronte da pátria. porém, sírios e libaneses, até à época desta narrativa, não contavam, em seu seio, um único pintor notável. Porque a formosura, na arte pictória, consiste na formosura do nu, e, segundo os costumes dos países do Oriente, o nu é inconcebível. A mulher da Europa e da América pode ter os mesmos direitos que o homem, ao passo que a mulher na Ásia suspira por um pouco de ar livre. (Não sei qual das duas é mais digna de compaixão.) As européias se mostram aos homens quase nuas; as orientais velam seu corpo e as maometanas até seu rosto. A moda de exibir os seios e as espáduas, pelo decote do vestido, espalhou-se por todo o mundo, mas não no Oriente. O nu é necessário para embelezar a arte e, por isso, foram mestres os egípcios e os gregos, que puderam inspirar-se no nudismo natural. Contudo, nós, escritores e leitores, podemos entrar onde não entra o vulgo e ver o que está oculto.
* * *
- Maria! – perguntou Joana. – Que tens?... Desde que entramos na água não pronunciaste uma só palavra.- Não sei porque, mas me sinto triste desde que chegamos. - Será, talvez, a recordação do que sucedeu ontem? - Pode ser – respondeu Maria, ocultando-se num mergulho. O banho da fonte era um recinto fechado por três lados, ao passo que o quarto era aberto a partir da altura de um metro do fundo. Não havia, portanto, possibilidade de afogar-se. Enquanto as jovens riam e brincavam na água, Joana levantou a cabeça e viu o advogado sentado à sombra deum salgueiro. Disse  então às suas companheiras:
 
- Parece que é hora de sairmos da água. E ela, antes das outras, começou a secar  seu corpo, para poder vestir-se. Enquanto suas amigas saíam do banho, apressou-se em reunir-se a João Bakal. - Que sugere você que eu diga à senhorita Maria? – perguntou sorridente, pelo prazer de falar com o homem a quem amava. - É muito simples, Joana. Diga-lhe: “João Bakal deseja falar-lhe sobre um assunto muito importante.” Depois venha você com ela.- Não serei demais? – perguntou timidamente Joana. - Não – respondeu João, sorrindo – sua presença é necessária. A jovem voltou ao lugar onde estavam suas companheiras e, aproximando-se de Maria, lhe disse: - Venho diante de ti como mensageira e devo cumprir minha missão. - Que queres dizer, querida Joana – perguntou Maria, admirada. - Quero dizer que o Dr. João Bakal, que se acha sentado a poucos metros daqui, encarregou-me de pedir-te uma entrevista em seu nome, pois necessita falar contigo sobre um assunto de grande importância. Maria enrugou as sobrancelhas e fixou seu olhar em Joana, como se quisesse investigar a verdade ou encontrar a resposta para a sua curiosidade, no coração da moça.- Que deseja de mim esse atrevido?
  – perguntou quase colérica. – Não quero vê-lo! - Perdoa, Maria, porém és muito injusta, chamando-o assim... Não sei o motivo da entrevista; em todo caso, és livre de ir ou não... Porém, posso assegurar-te que o assunto é importante, pois o doutor o disse e ele não pode mentir. - Oh, sim! Suas palavras são infalíveis... - Podes criticar quanto quiseres, mas eu estou convencida da sua lealdade. Maria sorriu e depois perguntou: - Pediu ele uma audiência secreta? - Eu quis que fosse secreta, mas ele não concordou e disse: “Uma vez que vocês são duas amigas, podem presenciar e ouvir nossa conversa”. - Pode ser que tenhas razão, Joana; vamos ver esse senhor. As jovens dirigiram-se para o lugar onde João as esperava. Ao vê-las chegarem, ele levantou-se e, com seriedade e respeito, inclinou-se, dizendo: - Senhoritas, não posso oferecer-lhes  outros assentos senão os da Natureza. Sentemo-nos. Todas se acomodaram como puderam, menos João que, depois de olhar para Maria fixamente, disse, sem tirar os olhos dela:
 
- Deus sabe, senhoritas, que nunca tive a intenção de molestá-la com uma entrevista, principalmente depois do que aconteceu no nosso primeiro encontro. Porém, ontem mesmo teve um outro acontecimento que só a senhorita poderá remediar. Todos nós sabemos que o homem é um joguete nas mãos do destino, e este nunca o deixa em liberdade para realizar o que deseja; todos os seus atos são dirigidos pela Fatalidade, apesar do seu tão apregoa do livre arbítrio. Antes de chegar ao ponto essencial, para o qual solicitei esta entrevista, é necessário começar com um prólogo que poderá parecer-lhe enfadonho, porém é indispensável para chegarmos ao fim. Eu, senhorita, sou um dos que crêem na boa justiça, acompanhada da paixão e da devoção unidas ao anelo.
Isto é raro e o raro é a medida dos poetas; os
homens por isso, se desviam do reto caminho, e a mão da perplexidade começa a perturbar seus desejos, seus costumes e até mesmo sua vontade... Baseado neste princípio, tenho contradito os demais, pois em tudo sou diferente deles, porque não compartilho dos seus sonhos e dos seus ideais. Amo o que os outros detestam e odeio o que os outros apreciam... Creio que a humanidade é uma árvore daninha, porém terrível por sua robustez e força: suas raízes estão plantadas nas profundezas da terra, suas flores são ambição e maldade, e seus frutos desgraças... Alguns reformadores quiseram mudar a natureza dessa árvore, por meio de enxertos, porém foram vencidos por ela: uns morreram lapidados, outros crucificados e o resto em lôbregas prisões. Pois bem, a quem tem essa crença não se pode repreender a “grosseria” de caráter... Intencionalmente frisei a palavra “grosseria” para ter a ocasião de pedir-lhe perdão pelo aborrecimento que lhe causei ontem. Maria havia escutado as palavras de João com arrebatamento. Seu espírito dilatou-se, afastou-se do corpo e seguiu, com as palavras do advogado, às regiões da poesia e da filosofia. Mas quando ouviu João pedir-lhe perdão pelos acontecimentos da véspera, sentiu que seu espírito regressava a seu corpo e, já senhora de si, respondeu: - O que já passou, passado está, doutor... Peço-lhe continuar a exposição. João sorriu e prosseguiu: - Um companheiro de Universidade me dizia que, para ser feliz, o homem deve viver como ermitão no meio da Sociedade, porém como isso é difícil! Mas é a pura verdade. Tenho pensado muito nas desgraças da humanidade e cheguei à conclusão que, para seus males, não há remédio. Porque esse enfermo, muitas vezes secular, crava o punhal no peito de seu médico, mata-o e logo fecha os olhos, dizendo tranquilamente: “Na verdade, era um bom médico.” Assim fizeram os judeus com Jesus: crucificaram-no e depois disseram: “Verdadeiramente era o Filho de Deus...” Os ocidentais nos criticam; entretanto são eles os mais dignos de compaixão, porque chamam de civilização uma miragem no deserto de sua vida, e de progresso, um fantasma que frequentemente lhe aparece à noite. Chamam de civilização as construções elevadas, os templos suntuosos e as largas avenidas, e de progresso, o viajar de avião, a exploração da terra, a construção de canhões e outros aperfeiçoados engenhos bélicos que espalham a morte e a desolação. - Então nega o senhor os proveitos da civilização moderna? – perguntou Maria, admirada com o discurso de João.
- Eu não sei, senhorita, se devemos chamar de civilização a selvageria refinada, porque quando pergunto ao meu íntimo o que é a civilização, ele me repete a pergunta, como se não a entendesse. A vida não consiste em aparências acidentais, mas sim na essência, na substância das coisas. Os homens não são julgados por suas fisionomias, mas sim por seus corações; a religião, por sua vez, não pode ser apreciada pelas suas exterioridades e pelos seus ministros, mas sim pela sua doutrina e pelos seus efeitos, ocultos nas almas. Assim, a arte musical não é um conjunto de notas graves ou agudas, que ouvimos em uma canção; a poesia também não é a sucessão das palavras de uma composição poética, nem tão pouco a pintura uma mistura de cores. Não; a arte não é isto, que é apenas seu corpo, mas sim o espírito que o anima: na música são os intervalos musicais; na poesia, o ritmo e o sentimento oculto na alma do poeta; e na pintura,
 
o ideal sublime que o pincel exprime e matiza, permitindo-nos, assim, ver a sublime formosura do que a tela é apenas um reflexo, mais ou menos fiel. Da mesma forma, a civilização não consiste em acompanhar a moda, em fingir sorrisos hipócritas, em inclinar-se diante de uma mulher até tocar o solo com a fronte e outras frivolidades. A civilização consiste no progresso espiritual e moral, na liberdade, na fraternidade, na igualdade... Talvez me perguntará: “Acaso a moderna civilização não trouxe consigo a liberdade e outros dons celestes?” A uma tal pergunta responderia: a igualdade que equipara o homem aos animais, porque comete seus crimes sob a égide da liberdade. Sessenta séculos atrás, Caim mata Abel e agora, por toda parte e em todos os homens, encontramos o estigmada raça maldita do fratricida. Há quarenta séculos, vimos à mulher da Babilônia obrigada a entregar seu corpo, ainda que fosse uma só vez, a um estranho qualquer; e hoje vemos a parisiense oferecer voluntariamente o seu, para gozo do primeiro que aparecer, a troco de uma moeda de inferior valor. Há trinta séculos, vimos um Faraó atormentar os judeus, e hoje vemos um Faraó em cada capitalista e um judeu em cada trabalhador. Onde está o progresso espiritual?... A civilização nos deu a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Não podemos negá-lo, porque as encontramos em nossa própria degradação e na corrupção das nossas atitudes. É por isso que a mentira não se transformará em verdade, mesmo que seja vestida de seda; e o crime nunca poderá ser virtude, ainda que se lhe corte as unhas. Assim, a diferença entre o homem civilizado do Ocidente e o do Oriente é a mesma que existe entre o leão e o tigre. Seus governantes e os nossos tiranizam o povo, autorizados pelas leis; e o rico do oriente, como o do ocidente, absorve com seu dinheiro o sangue do pobre... O homem é sempre o mesmo em todas as partes do mundo e suas leis são também as mesmas, favorecendo sempre o rico contra o pobre. Devo parecer-lhe, senhorita, um homem louco ou, pelo menos, raro, porque é esta a opinião que formei da humanidade inteira. Porém, que quer, senhorita?... Como diz o adágio: “Deus tem em suas criaturas maravilhosos exemplares”, e eu fiz a promessa, desde que me formei em direito, de unir-me ao fraco, para defendê-lo contra o forte, para restabelecer os direitos dos oprimidos contra o tirano que o escraviza. E nesta luta que declarei à opressão e à injustiça, farei o possível para triunfar; mas se perder, não será por minha culpa... Deus não pede o impossível: cumprirei meu juramento e lutarei contra essa humanidade transviada, até sucumbir no combate da vida... - Faz o senhor muito bem, doutor – respondeu Maria. - Senhorita, não lhe disse tudo isso para obter seu elogio, que, aliás, tenho em grande estima, mas sim porque é necessário para explicar minha atitude no caso que vou referir agora. Ontem, depois de separar-me de vocês, tomei o caminho do povoado. Entrei na casa de Pedro Farrau para visitá-lo e, ao entrar, percebi que o ancião e sua esposa choravam. Compreende a senhorita o que significa o pranto de um velho? Creio que sim, porque as mulheres possuem um coração mais compassivo que o dos homens. Ao vê-los em tal estado de desconsolo, corri a abraçá-los e fiz o possível para confortá-los. Eu os quero muito e dói-me ver sofrer aqueles que embalaram meu berço, quando menino, e satisfizeram os meus desejos de adolescente – e acrescentou emocionado – principalmente a velha Sara, que fez o possível para suprir a falta do amor materno, quando perdi minha mãe... E João fez um movimento brusco, como se quisesse afastar a tristeza que lhe causava aquela tragédia, sucedida nos albores da sua existência. - Não queriam dizer-me a causa do seu pranto – prosseguiu o advogado. Porém, eu lhes exprobrei sua falta de confiança e ameacei retirar-me de sua casa. Então, me obrigaram a ficar, dizendo: “Filho querido, acaso já não é bastante o nosso infortúnio, para entristecê-lo também, com nossa desgraça?” Eu respondi: “Se me consideram como filho, devo partilhar convosco as alegrias e as tristezas”. “Nosso mal não tem remédio – me disse Pedro – mas uma vez que nos obrigas a contar-te nosso infortúnio, satisfaremos o teu desejo: choramos porque somos fracos e não temos quem nos proteja, porque, abusando da nossa fraqueza de velhos, nos querem arrebatar a herança de nossos pais e avós, que eu reguei com meu suor e minhas lágrimas.” “Deixa de falar tanto, tio – disse-lhe eu – e diga-me quem quer espoliar sua herança e sua propriedade?” E ele respondeu: “José Bey Harkuch. ”Cheia  de estupor, Maria, confundida e assombrada, se levantou e aproximou-se de João Bakal. - Meu pai?!! - Seu pai, senhorita. - Meu pai? - Ele mesmo – confirmou o advogado. Maria retrocedeu,  como retrocede a vítima ao ver brilhar na mão do assassino o punhal que ameaça cravar em seu peito. Com lentidão, sentou-se novamente e ocultou seu rosto com as mãos, na atitude de quem chorava ou meditava profundamente. Aproximaram-se dela suas jovens amigas, porém a filha do Bey as afastou com a mão, manifestando, por esse gesto, o desejo de que a deixassem só. João permanecia de pé, em frente de Maria e em seu peito lutavam dois desejos opostos: o de vê-la sofrer e chorar, desolada, e o de acercar-se dela e consolá-la. Vencendo este último, aproximou-se pressuroso, dizendo:
- Senhorita, eu sacrificaria uma parte do meu ser para não vê-la sofrer, quer seja minha amiga ou inimiga. Portanto, não posso vê-la neste estado, sobretudo sabendo que fui eu o causador. - Não doutor, o senhor não é o culpado, mas sim os meus. - Não se aflija assim, não é necessário... Para tudo há remédio. Maria foi recobrando a serenidade, pouco a pouco. Ergueu-se repentinamente e perguntou:- E que fez o senhor, depois? - Neste assunto, o importante é o que eu já lhe disse. O resto não merece ser mencionado. Maria Harkuch voltou-se para suas amigas e pediu: - Peço-lhes deixarem-me a sós com o doutor. Quando as moças se afastaram, voltou-se para João e disse: - Doutor, eu lhe peço que me diga a atitude que tomou neste caso. - Conduzi hoje o velho Farrau perante o tabelião e fi-lo outorgar-me uma procuração com poderes gerais. - E depois? - Depois quis apresentar a denúncia ao Tribunal; porém, antes de entrar no palácio da Justiça, refleti:  “É um crime obter uma coisa por mal, quando se pode obtê-la por bem.” Então voltei para casa, pensando no auxílio que a senhorita me poderia prestar. O coração de mulher é uma fonte de caridade e por isso procurei lançar mão desse remédio. - E não temeu o senhor a cólera de meu pai e dos seus amigos, o Bispo e o Emir? – perguntou Maria. - Senhorita, a melhor resposta para sua pergunta, é o que eu pensava ao regressar a minha casa. - Que pensava o senhor? - Enquanto caminhava, dirigia meu olhar para o céu e clamava: “Aceita minha obra, Deus meu, como o holocausto de Abel, embora tenha que morrer às mãos de Caim!” Aquelas palavras impressionaram Maria como um hálito fúnebre, pressagiando a morte de um ser querido. Depois disse: - Doutor,  sou muito infeliz porque nada poderei obter de meu pai neste particular, pois é impossível convencê-lo de seus erros. Devo, portanto, declarar-lhe, desde já, que a esperança que depositou no meu auxílio terá que se desvanecer. Com todo o prazer daria meu sangue para que meu pai mudasse de idéias e de costume; desejaria até mesmo ser um Deus para impedir seus atos que são contra a justiça... Mas isto não quer dizer, estimado doutor, que eu não tente alguma coisa em favor do velho Farrau. Esta noite farei ver a meu pai a injustiça do seu proceder, embora tenha a certeza de ser derrotada. Porém, é minha obrigação e intentarei tudo para demovê-lo.
- Senhorita – explicou João – considero-a um anjo celeste, seja quem for seu pai, e, antecipadamente, lhe agradeço sua intervenção no caso de Farrau, porque os Evangelhos nos dizem: “Segundo suas intenções serão recompensados.” - Doutor – disse Maria – quer apertar minha mão, depois do sucedido ontem? - Considero-me feliz, senhorita, e mais ainda se me permitir beijá-la, porém... - Fale sem receios, doutor. Que significa esse “porém”? Quererá, talvez, se referir ao adágio: “Beijar a mão e desonrar a barba”?...  - Oh, perdão senhorita! Minha intenção era outra: queria dizer-lhe que não é lícito beijar a mão que pertence a outro... Maria enrugou as sobrancelhas e João julgou que ia sobrevir outra tempestade. Porém, longe de se aborrecer, ela sorriu, perguntando:- A quem pertence minha mão? - Ao Emir Shafik. - Juro-lhe, doutor, que, enquanto eu viver, não lhe pertencerá minha mão. João guardou silêncio, porém sorria.- Que tem, doutor?- Não sei se tenho direito de perguntar mais. - Já que me permite perguntar o que quiser, gostaria de saber quem é o feliz mortal que a pretende? - E o senhor chama de feliz aquele que pretende minha mão? - Quem a pretende propriamente não, porém sim quem a obtiver – corrigiu João, enquanto estreitava, entre seus dedos, a mão delicada de Maria; e logo ajuntou solenemente: - Sim, juro-o! - Se o senhor acha que a felicidade consiste em obter minha mão, pode ficar com ela. Como se fosse tocado por uma poderosa corrente elétrica, João se aprumou de um salto, suas pupilas se dilataram com uma expressão de assombro. - Que disse a senhorita? – perguntou ele, sem dar crédito ao que ouvia. - Não costumo repetir nem trocar minhas palavras. - Senhorita! - Suprima “senhorita”. João começou a depositar sobre a mão de Maria, que tinha entre as suas, uma interminável sucessão de beijos, e ela não opunha a menor resistência às carícias amorosas do advogado. Ao cabo de alguns instantes, perguntou: - E agora, ainda pensa em demandar contra meu pai?
João, admirado, respondeu em tom severo: - Que quer dizer com essa pergunta? - Quero dizer – replicou a filha do Bey – que lhe ofereço o meu amor, com a condição de não acusar meu pai. João contemplou longamente Maria. Seus olhos refletiam a tristeza de viajantes situado na encruzilhada de dois caminhos igualmente desconhecidos e perigosos... Em seguida, ergueu seu olhar e exclamou: - Meu Deus! Que culpa cometi para me castigares desta maneira?  Serei acaso um joguete nas mãos do destino, para que todos abusem de mim? Depois fixou seu olhar em Maria, dizendo-lhe: - Maria Harkuch,  estás muito enganada, acreditando que João Bakal é uma mercadoria como outra qualquer, que se vende ao primeiro que a procure... É verdade que fui um tolo, julgando que a filha de José Bey Harkuch se rebaixasse a amar um camponês desinteressadamente. Porém, graças a Deus, desperto-me a tempo de minha embriaguez. Agora, ouve minhas últimas palavras: não preciso mais de reconciliação!... Amanhã mesmo acusarei teu pai de usurpar
terras alheias! Ao terminar estas palavras, fez uma inclinação a Maria, em sinal de despedida. - Espera! – exclamou ela por sua vez. – Disseste tuas últimas palavras e eu também quero dizer as minhas. E voltando-se para as jovens, chamou-as:- Joana! Josefina! Venham cá! Admirado pelo procedimento da jovem, João dizia para si mesmo: “Que insulto ou ofensa me estará reservando?” No mesmo instante, acudiram as amigas de Maria ao seu chamado e esta lhes disse: - Há um momento indispus-me com este senhor, porque lhe ofereci carinho e minha amizade, em troca do seu silêncio, querendo assim livrá-lo da inimizade de meu pai, do Bispo e do Emir. Ele, porém, não aceitou e respondeu-me com insultos, pagando-me assim o bem com o mal. Por isso... Calou-se a jovem um momento e, aproximando-se de João, tomou-lhe o braço, continuando: - Terás teu castigo... João Bakal. Se tivesses consentido em não demandar contra meu pai, se me tivesse obedecido – e enquanto falava, Maria ocultava um sorriso – eu teria menosprezado e detestado. João escutava estupefato. A filha de José Bey Harkuch continuou:- João, és o maior homem que eu conheci no Líbano. Antes de conhecer-te, eras o alvo ao qual dirigia sempre o meu pensamento. Eras o herói de meus sonhos antes de despertar... Há alguns minutos, quando Joana me disse que querias falar-me, estremeci, como se pressentisse que, naquele minuto, esse sonho da minha vida seria transformado numa formosa realidade... Bendito seja o incidente de ontem, o encontro de hoje e também o casal Farrau, porque são os laços que nos ligam. Dize-lhes, em meu nome, que lhes darei tudo o que herdei de minha mãe... Há pouco me beijavas secretamente a mão; e agora eu retribuo teus beijos publicamente. Diante de Deus e destas duas mulheres, eu te juro que serei tua amiga, tua irmã, se quiseres, até a morte. E sem deixar-lhe tempo para responder, cobriu de beijos o rosto de João, que, submisso e silencioso, se assemelhava a uma criança que se deixava acariciar pela mãe. E quando Maria se cansou de exprimir seu afeto, disse a suas companheiras, abraçando-as:- Podem felicitar-me! Porém, não me invejem! Alegres, elas a abraçaram também, cobrindo-a de beijos. Joana não deixou perceber o pesar que invadiu seu coração, porém em seus olhos tremia uma lágrima.

* * *

Dizem que o amor nasce de uma longa convivência; pode ser verdade, algumas vezes. Porém, a isto não se deve chamar amor, porque é um sentimento obrigatório ou oriundo do hábito. Dois jovens se casam por conveniência: no princípio de sua vida matrimonial se golpeiam até se casarem; e então choram e se lamentam. Porém, como o matrimônio, em muitos países, é uma cadeia dura, que não pode ser limada nem despedaçada, compreendem que é preciso encontrar um pouco de mel para a acidez da vida; e assim começam os seus esforços para suportarem-se mutuamente. Por fim, conseguem e é isso que se chama amor obrigatório ou de conveniência. O verdadeiro amor é o produzido por um olhar e se um olhar não o produzir, não o produzirão tão pouco cem anos de vida em comum. Um poeta árabe construiu a seguinte escala para o amor: Olhar, sorriso, saudação, conversação e encontro. Outro poeta é mais exigente e, para chegar ao verdadeiro amor, propõe maior número de degraus: Seis olhares fazem um sorriso; seis sorrisos uma saudação; seis saudações um beijo e seis beijos com interesse conduzem ao matrimônio. João e Maria olharam-se e seus corações palpitavam sob o influxo de seus olhares. Sorriram, cumprimentaram-se e, finalmente, falaram. “Faça-se!” – disse Deus e o mundo se fez. Uma só palavra incrustou na via Láctea milhões de sóis; no espaço, milhões de mundos; e em cada mundo, milhões de seres. E assim cada coisa em si mesma é um mundo. Uma palavra saída da boca do homem pode conduzir à morte ou à imortalidade. Uma única sílaba pronunciada por um rei conduz seu povo à glória ou à derrota... A ferida produzida pela espada pode ser curada, porém a da palavra não tem cura. A palavra é a essência da divindade na terra. Pode-se derramar sangue, queimar corpos, encadear os pés e as mãos, porém a palavra, uma vez pronunciada, não pode mais ser retomada, porque, como o ar, reina no espaço e ninguém tem poder para aprisioná-la. Jesus foi crucificado, porém suas palavras reinam e reinarão até o fim dos séculos. Sócrates foi envenenado, porém ainda hoje admiramos sua doutrina. Assim, nem os judeus puderam matar Jesus, nem os gregos puderam fazer calar Sócrates, porque suas palavras ficaram e os imortalizaram. Maria pronunciou uma palavra e, com ela, mudou a direção da sua vida e da de João, fazendo-os viajar da novela à história e da sombra à realidade.

* * *

- Nós nos veremos em minha janela – disse Maria a seu namorado. E dirigindo-se às jovens que estavam com ela, disse-lhes: - Vocês são surdo-mudas... Juntos fizeram a viagem de regresso ao povoado e Maria assim falou ao jovem: - É hora de separarmo-nos; aparentemente seremos sempre inimigos. - De quem tens medo? – perguntou ele. - A ninguém temo. Porém, tremo por ti, por minha felicidade. Temo que a víbora morda teu pé e não possas acompanhar-me até o cume da felicidade.

 
Extraído do livro  
Adonai – de Jorge Adoum

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