Papa Clement-XIV |
Fragmentos históricos da Companhia de Jesus
— O padre Ricci que se apresente imediatamente!. . . — ordenou o sumo pontífice.
Clemente falava excitado, imperioso, como um homem que procede sob a influência de uma espécie de febre. A sua ordem foi imediatamente cumprida.
Entrou o padre Ricci, geral dos jesuítas.
Era um homem de estatura elevada, magro, seco, com a vasta fronte desguarnecida de cabelos. Aqueles olhos profundos, a ossatura do rosto, e especialmente do queixo, indicavam uma natureza cautelosa e regrada; verdadeiro chefe de uma tribo de privilegiados, que resistia ao assalto de todo o mundo.
— Padre Ricci — disse o Papa em voz sacudida — recebestes o resumo que vos mandei entregar das acusações que de toda a parte se levantam contra a Companhia?
O Papa Negro inclinou-se com um sinal afirmativo.
— Pois bem, eu impus à Companhia que obtemperasse aos abusos indicados nessas queixas. Que tem feito a Companhia para dar satisfação às legítimas exigências dos príncipes católicos, e às minhas ?
— Nada, beatíssimo padre — disse com imperturbável calma o geral.
— Nada! — exclamou Lourenço Ganganelli, cujo rosto purpureou-se de cólera. — Às minhas ordens, às recomendações feitas para bem da cristandade, responde-se dessa maneira?
— A Companhia dá a todo o mundo o exemplo do respeito e do acatamento à Santa Sé. Que o Sumo Pontífice faça um sinal, e todos os jesuítas, desde o geral até ao último noviço, afrontarão com prazer o martírio pela honra do Papado.
— E para o honrar — disse Clemente encolerizado — começais por desobedecer às suas ordens ?
— Nós cumprimo-las escrupulosamente, Beatíssimo Padre — afirmou com serenidade o jesuíta.
— Cuidado, padre!. . . Eu não estou disposto a tolerar as cavilações da vossa casuística!. . .
— Não há nisto cavilações, Santidade — disse o geral, a quem a chicotada daquela acusação fez purpurear as faces. — O Papa ordenava-nos que déssemos de mão às nossas miras ambiciosas, que expulsássemos dentre nós os irmãos corrompidos, simoníacos, concusores; que volvêssemos para as coisas do céu a nossa atividade que aplicávamos à satisfação das nossas ambições políticas. . .
— E então?
— Então, Santidade, não existem ambiciosos na Companhia Jesus; não existem entre nós Jesuítas manchados das graves culpas, que com toda a justiça o Sumo Pontífice quer reprimir. Por isso não tivemos ocasião de castigar, porque não existiam tais culpas.
Clemente ficou algum tempo confundido pela audácia desavergonhada daquele homem.
Negar as ambições políticas de uma companhia que, para conseguir os seus fins, não recuara diante assassínio de um rei como Henrique IV, e que ainda agora estava fundando na América, à custa das coroas de Portugal e de Espanha, o império do Paraguai, era uma audácia de que só seria capaz um homem como o padre Ricci.
Todavia, Clemente bem depressa readquiriu o seu terrível sangue frio:
— Está bem. Louvo a diligência do geral da ordem, e não duvido de que ela tenha sido grandíssima, apesar de não ter dado resultado algum. Mas as informações que eu tenho são diferentes, fundado nelas, tomei acerca da Companhia as decisões que ides rever. . .
— Mas Vossa Santidade. . .
— Eu julgo como soberano, e inapelavelmente — disse com altivez o Papa. — Desapareceu o momento de discutir, agora chegou o de obedecer.
O geral sentou-se, e o Papa ditou:
“São suprimidos os conventos dos jesuítas em todos os sítios onde o governo católico do país o exigir por justos motivos de interesse público;
“Nos outros países o número das casas professas e dos noviciados será reduzida à metade;
“Será vedado aos jesuítas receberem noviços de idade inferior a vinte anos, quando tenham o consentimento dos pais; e a vinte e cinco, se faltar esse consentimento;
“Os jesuítas estarão, em todas as dioceses, sujeitos à autoridade do bispo, e deixarão de ter efeito todas as dispensas e privilégios em contrário”.
“É concedido indulto pleno e inteiro aos governos que até hoje se têm apoderado dos bens dos jesuítas, contanto que o produto deles tenha sido aplicado a obras de caridade e de religião”.
Ricci escrevera este fulminante decreto, que num momento destruía a obra de dois séculos, sem que o seu rosto de mármore traísse a menor comoção. Mas quando o Papa lhe ordenou que assinasse, o geral ergueu-se.
— Vossa Santidade consinta que eu não assine — disse o geral, pálido e com os dentes cerrados.
—- Vós haveis de assinar, padre Ricci. O geral da Ordem deve-me obediência absoluta, segundo o seu juramento, e vós sabeis as penas que se aplicam aos perjuros.
— Eu já não sou geral da Ordem. Queira Vossa Santidade aceitar a minha demissão, e proceder à nomeação do meu sucessor.
— Tende cuidado, padre Ricci!. . . — disse ameaçadoramente Clemente XIV — lembrai-vos de que esta reforma, se for lealmente aceita, é a última esperança de salvação da Companhia.
— Os meus irmãos não aceitarão a salvação oferecida por tão alto preço. A Companhia de Jesus foi instituída por Inácio de Loiola, sobre as atuais bases, imutáveis; os jesuítas não podem alterá-las sem faltarem ao seu dever. Sint ut sunt, aut non sint — ficam como estão, ou deixam de existir.
— Pois bem! deixarão de existir! — exclamou Clemente XIV, no auge da indignação.
E correu para a mesa, onde estava já pronta a Bula para a supressão da Companhia de Jesus, maravilhoso documento de perspicácia, de lógica, de verdadeiro sentimento cristão, formidável libelo contra os jesuítas, dirigido por um Papa a todo o orbe católico.
Clemente assentou-se e assinou na parte em branco do pergaminho:
“Dada em Roma, sob o anel do Pescador. . .
Clemente, Papa XIV”.
— Padre Ricci, curvou-se, como se aquela declaração, que convertia num simples frade um homem até então mais poderoso do que todos os Reis da terra, não lhe causasse a mínima impressão.
— Vossa Santidade resolveu na sua alta sabedoria; — disse e1e com humildade — a nós só nos cumpre curvar a cabeça e obedecer. Não me resta senão perguntar a Vossa Santidade que convento me destina para refúgio da minha velhice.
Clemente tocou a campainha.
— O capitão das guardas suíças — ordenou ele ao criado. Quando entrou o capitão, um homenzarrão de aspecto marcial, o Papa disse-lhe, apontando para o frade:
— Capitão, tende o cuidado de conduzir o reverendo à fortaleza do Castelo de Santo Ângelo. Levai convosco os homens necessários para o cumprimento da vossa missão.
O capitão curvou-se.
— Entregai esta carta ao governador do castelo — acrescentou Clemente, que naquele meio tempo tinha escrito algumas linhas num papel. — Dizei-lhe que a cabeça dele me responde pela execução dessas ordens.
— Vossa Santidade será obedecida — disse o capitão, aproximando-se do frade, para, se fosse preciso, lhe deitar a mão.
Mas o geral dos jesuítas recuou, e com um olhar altivo deteve o capitão a distância; inclinou-se respeitosamente diante do Papa, depois cruzou os braços sobre o peito e saiu, acompanhado pelo suíço, como um embaixador que se faz reconduzir pelo seu capitão das guardas.
Mal o padre Ricci tinha desaparecido, o visconde de Savedra, embaixador de Portugal, que do lugar onde estivera escondido não perdera uma sílaba daquele colóquio, saiu do seu esconderijo e lançou-se aos pés do Papa.
— Vossa Santidade — disse o português — foi muito além das minhas esperanças. Nunca a autoridade e a majestade de um soberano e de um Pontífice encontraram expressões mais nobres. O mundo inteiro, Santo Padre, há de aplaudir a vossa magnânima resolução!
Clemente estava absorvido em profundos pensamentos.
— Vedes esta Bula, visconde?. . . — perguntou ele num tom de voz triste ao embaixador de Portugal.
— A Bula para a supressão dos jesuítas?... o monumento que há de eternizar o nome de Clemente XIV?
— Pode ser — disse Clemente, sorrindo com melancolia — mas no entanto lembrai-vos bem disto, visconde, e recordai-o quando chegar a ocasião. . . Assinando hoje este pergaminho, — e pôs a mão sobre a Bula — eu firmei a minha sentença de morte!
A Cúria e as ordens religiosas tinham prejudicado grandemente o prestígio da Igreja; Clemente XIV pensava em reformar a Cúria, em olhar com um cuidado severo pelas plantas parasitas das ordens religiosas, suprimindo sem o menor escrúpulo aquelas que não fossem compatíveis com as exigências do tempo.
A ordem mais temida e naturalmente mais odiada era a dos jesuítas.
Havia dois séculos que em todo o mundo católico a Ordem formava uma barreira insuperável contra qualquer reforma que implicasse progresso ou liberdade. Os reis que aceitavam o domínio jesuítico eram escravos da Ordem; os que repeliam esse domínio tinham a certeza de que, cedo ou tarde, haviam-se de acabar mal.
Desde que Henrique IV — o rei querido do seu povo como nenhum o fora até então, o chefe da Europa liberal cristã — desde que Henrique IV fora assassinado por um agente da Companhia de Jesus, Ravaillac, nenhum príncipe podia ter a certeza de que, em caso de resistência às vontades da Companhia, o não esperasse um pouco de veneno ou uma punhalada.
Apesar disso, durante muito tempo não explodiu a ira dos poderosos contra os Jesuítas.
Clemente XIV, que num ímpeto do seu coração generoso expusera a vida para libertar a humanidade de um vampiro insaciável, pagou aquele seu heróico cometimento.
Assaltou-o uma doença misteriosa. Em toda a Europa se faziam votos ardentes para cura do ilustre pontífice, do santo sucessor dos apóstolos, mas esses votos não foram ouvidos.
Afinal, o povo, com o seu instinto infalível, não se enganou. O povo sabia de que moléstia morria o infeliz Pontífice Clemente XIV morria envenenado.
Do fundo do seu cárcere, no castelo de Santo Ângelo, o padre Ricci dirigia a vingança. Não se contentaram com ver morto o vigário de Cristo, quiseram que a morte dele fosse acompanhada de horríveis sofrimentos, para que de futuro nenhum outro se arriscasse a tentar nada contra a Companhia.
Porque, apesar de suprimida e dispersa, a terrível sociedade existia sempre. Ela já não tinha nem existência oficial nem hábito particular, mas os seus filiados enchiam os salões do Vaticano, rodeavam o mártir moribundo, e misturavam-lhe o veneno na comida e na bebida.
Mas quando afinal Clemente foi morto, quando a implacável crueldade que o tinha ferido já não tinha diante de si senão um cadáver, então é que se manifestou o poder da Companhia de par com a sua ferocidade.
Os médicos tinham descoberto o veneno; terríveis ameaças obrigaram-nos a calarem-se, e o Papa foi enterrado sem pompa e sem que o vingassem.
E não foi só isso; apenas ele desceu à sepultura, a satânica alegria dos filiados venceu a cauta prudência habitual da Ordem.
Em breve saíram à luz folhetos e poesias, em que a horrível morte do mal aventurado Pontífice era apresentada como um justo castigo, que a Providência quisera aplicar ao destruidor dos jesuítas. A memória do Papa foi dilacerada por calúnias sem conto, e os jesuítas, livres do seu grande inimigo, trataram de recomeçar a interrompida obra da conquista do mundo.
Copiado do livro O Papa Negro, de Ernesto Mezzabota.
(1848)
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