A Revolução Francesa (1789-1799)
Edward McNall Burns – História da Civilização Ocidental
Edward McNall Burns – História da Civilização Ocidental
A Revolução Francesa (1789-1799)
A Era da Revolução
PROFUNDAS modificações assinalam a história
política da última parte do século XVIII. Esse período assistiu à agonia do
sistema peculiar de governo e de estruturação social que se desenvolvera na
época dos déspotas. Na Inglaterra tal sistema se achava praticamente abolido
por volta de 1689, mas ainda persistia em outras partes da Europa,
ossificando-se e corrompendo-se cada vez mais com o passar dos anos. Floresceu
em todos os países maiores sob a influência combinada do militarismo e da
ambição, por parte dos monarcas, de consolidai em o seu poder a expensas dos
nobres. Mas quase não houve lugar em que se apresentasse sob uma forma tão
abominável como na França, durante o reinado dos três últimos Bourbons. Luís XIV foi a encarnação suprema do
poder absoluto. Seus sucessores, Luís XV e Luís XVI, arrastaram o governo aos
derradeiros extremos da extravagância e da irresponsabilidade. Além disso, os
súditos desses reis eram bastante esclarecidos para sentirem vivamente os seus
agravos. Não é de estranhar, portanto, que a França tenha sido o teatro de
violenta sublevação para derribar um regime que desde muito vinha sendo odiado
e desprezado pelos cidadãos mais inteligentes do país. Não estaremos muito
errados sr interpretarmos a Revolução Francesa como o clímax de um século cie
oposição que tomara corpo pouco a pouco, oposição ao absolutismo e à supremacia
de uma aristocracia decadente.
1. As causas da Revolução Francesa
Causas Políticas: 1) o governo despótico dos Bourbons.
Para facilidade de estudo, podemos dividir as
causas da Revolução Francesa em três categorias principais: políticas,
econômicas e intelectuais. Esta divisão, naturalmente, é um tanto arbitrária,
por não existir verdadeira distinção entre as classes consideradas. As causas
intelectuais, por exemplo, e até certo ponto também as politicas, eram em
grande parte econômicas na sua origem. Não obstante, visando uma simplificação
do assunto, podemos considerá-las em separado. Uma das principais causas
políticas já foi mencionada: o governo despótico dos Bourbons. Durante quase
duzentos anos o governo da França tinha sido uma autocracia. Nos séculos XIV,
XV e XVI havia-se reunido com intervalos irregulares uma espécie de parlamento
conhecido como os Estados Gerais e composto de representantes do clero, da
nobreza e do povo. Depois de 1614, porém, não tornou a ser convocado. Daí por
diante foi o rei o único detentor do poder soberano. Num sentido muito real,
era êle o estado. Podia fazer quase tudo que a sua vontade imperiosa ditasse,
sem receio de "impeachment" ou de restrições legislativas de qualquer
espécie. Escusava de preocupar-se com questões de constitucionalidade ou
relativas aos direitos naturais dos seus súditos. Podia atirar homens à prisão
sem processo, bastando para isso uma ordem real, ou lettre de cachei. Podia
impedir qualquer crítica à sua política impondo uma censura rígida à imprensa
ou restringindo a liberdade de palavra. Deve-se convir, no entanto, que a
tirania dos reis franceses tem sido amiúde exagerada. Na prática, houve
relativamente pouca interferência no que os homens escreviam ou diziam, em
especial durante os reinados de Luís XV e Luís XVI. Nenhuma ação desses
monarcas coibiu o espírito mordaz de Voltaire ou suprimiu os livros radicais de
Rousseau (r). Pelo contrário, os ataques destes e de outros
filósofos aumentaram de virulência à medida que se aproximava a Revolução. A
explicação, já se vê, não deve ser procurada num possível liberalismo de Luís
XV ou de seu atoleimado neto, mas antes na indiferença de ambos para com a
política.
(1) Voltaire esteve preso durante
algum tempo e exilou-se depois na Inglaterra, devido a um de seus
venenosos pasquins, mas isso se deu no começo de sua carreira de escritor.
Grande parte das acerbas criticas que fêz ao governo e à igreja
foram escritas depois de ter regressado da Inglaterra.
2) O caráter ilógico do Governo Francês
Uma segunda causa política da Revolução Francesa
foi o caráter ilógico e caótico do governo. A confusão reinava em quase todos
os setores. A estrutura política resultava de um desenvolvimento longo e
irregular, iniciado na Made Média. Novos órgãos tinham sido criados de tempos a
tempos para tratar de questões particulares, sem que se levassem em consideração
os já existentes.
Em consequência havia grande superposição de
funções e numerosos funcionários sem nenhuma utilidade recebiam emolumentos dos
cofres públi- . cos. Conflitos de jurisdição entre repartições rivais amiúde
atrasavam, durante meses a fio. a solução de problemas de vital importância.
Por quase toda parte as qualidades dominantes do sistema eram a
ineficiência, o desperdício e o suborno. Mesmo nos assuntos financeiros não
havia mais regularidade do que em outros ramos da administração pública.
Não só o governo funcionava sem orçamento mas também raramente havia
escrituração. Tampouco se fazia unia distinção clara entre as rendas do rei e
as do estado. Pior ainda era o proceder-se sem regra alguma à arrecadação
dessas rendas. Ao invés de nomear coletores oficiais, o rei usava o antigo
sistema romano de arrendar a arrecadação a corporações particulares e a
indivíduos, permitindo que retivessem como lucro tudo que conseguissem
arrancar do povo além da soma estipulada. Condições semelhantes de
desorganização prevaleciam no campo do direito e das normas judiciais. Quase
todas as províncias da França tinham o seu código especial baseado nos costumes
locais. Destarte, um ato punível como crime no sul do país, onde era mais forte
a influência romana, podia ser inteiramente ignorado pela lei numa província do
centro ou do norte. Essa falta de uniformidade era sobretudo mortificante para
as classes comerciais, amiúde envolvidas em transações com partes distantes do
país.
3) As Guerras dispendiosas dos reis franceses.
A causa política mais decisiva veio,
provavelmente, das guerras desastrosas a que se lançou a França no século
XVIII. As revoluções não se fazem com ataques esporádicos a um sistema ainda no
seu verdor, por mais depressiva que seja a política deste. Antes que possa
verificar-se uma grande sublevação politica e social (que é como cumpre definir
uma revolução verdadeira) parece ser necessário que ocorra um quase colapso na
ordem existente. Alguma coisa precisa acontecer para produzir uma condição de
caos. pondo a nu a incompetência e a corrupção do governo e provocando
tal gravame e aversão que muitos daqueles que até o momento defendiam o antigo regime s tem contra ele. Nada
melhor para conseguir tal fim do que uma derrota humilhante, ou pelo menos
sérios reveses num conflito com uma potência estrangeira. Na verdade, é quase
impossível conceber qualquer das grandes revoluções modernas senão como
consequência de guerras longas e desastrosas (2). O primeiro dos
conflitos que prepararam o terreno para a Revolução Francesa foi a Guerra dos
Sete Anos (1756-63), travada durante o reinado de Luís XV. Nessa luta a França
bateu-se contra a Inglaterra e a Prússia e, a despeito do auxílio da Áustria e,
por algum tempo, da Rússia, sofreu uma derrota esmagadora. Em resultado a
França viu-se compelida a entregar quase todas as suas possessões coloniais.
Era natural, e aliás bastante justificável, que a culpa dessa catástrofe fosse
atribuída à incompetência do governo. Os efeitos do golpe agravaram-se ainda quando
Luís XVI decidiu, em 1778, intervir na Guerra da Independência Americana. Se
bem que a França se achasse desta vez ao lado dos vencedores, o custeio das
frotas e dos exércitos no Hemisfério Ocidental, durante mais de três anos,
arruinou virtualmente o governo. Como veremos, foi essa condição de angústia
financeira em face de uma carga intolerável de dívidas a causa direta do atrito
entre o rei e a classe média e do consequente desencadeamento da revolução.
A Revolução Francesa não resultou da pobreza ou
sofrimentos do povo.
Passando às causas econômicas da Revolução
Francesa, devemos notar antes de tudo que o sofrimento generalizado entre as
massas populares não foi uma delas. A difundida crença de que a revolução
se desencadeou porque a maioria do povo curtia fome por falta de
pão e a rainha disse "comam bolo" está longe de ser uma verdade histórica.
A despeito da perda do seu império colonial, a França nas vésperas da Revolução
era ainda uma nação rica e próspera. Havia mais de dois séculos que a burguesia
francesa se locupletava com os lucros de um comércio expansionista, enquanto as
classes inferiores colhiam pelo menos algumas migalhas caídas da mesa dos
ricos. É mesmo opinião dos historiadores modernos que os camponeses da França
no século XVIII desfrutavam uma situação superior à dos camponeses dos demais
países da Europa, com exceção da Inglaterra (3). Que essa situação
tendia ainda para melhorar, provam-no o declínio da servidão durante o século
que precedeu a Revolução e o fato de que uma proporção cada vez maior de
camponeses se tornavam proprietários de terra. Havia, sem dúvida, muita miséria
entre os moradores dos bairros pobres de Paris, sobretudo durante o rigoroso
inverno de 1788-89. Mas não foi essa gente que fêz a Revolução; apenas participou
dela após ter sido deflagrada por outros. Nunca será demais acentuar que a
Revolução Francesa foi desencadeada como um movimento da classe média. Seus
objetivos iniciais interessavam principalmente à burguesia. Como os líderes
dessa classe necessitassem do apoio de uma percentagem maior da população,
endossaram naturalmente as c" – los camponeses. Mas os proletários pobres
foram pouco menos que esquecidos.
(2) É necessário, .naturalmente, fazer uma
distinção entre as verdadeiras revoluções; e as revoluções palacianas, muito
comuns nos Balcãs e na América Latina, e que realidade pouco mais são do que
sucedâneos de eleições.
(3) l.
R. Gotthschalk, The Era of the French Revolution, pp. 30-31.
As verdadeira Causas Econômicas: A ascenção da classe média.
Quais foram, então, as verdadeiras causas
econômicas? Talvez devamos colocar em primeiro lugar na lista a ascensão da
classe média a uma posição de extraordinário poder e prestígio. A emergência de
um novo grupo econômico com o sentimento dos agravos sofridos e a consciência
da sua própria força e impor: parece ser condição necessária ao deflagrar de
quer revolução. Essa classe nunca se compõe de míseros rebotalhos humanos,
desgraçados, famintos e desesperados. Pelo contrário, suas fileiras devem estar
imbuídas de um sentimento de confiança inspirado pelo sucesso prévio e
fortalecido pela crença de que um esforço a mais trará maiores vantagens no
futuro. Durante os anos de prosperidade que precederam a Revolução a burguesia
francesa passara a ser a classe econômica dominante. Afora a terra, quase toda
a riqueza produtiva estava em suas mãos. Controlava os recursos do comércio, da
manufatura e das finanças. A" disso, parece que os seus membros cada ano
se tornavam mais ricos. -Em 1789 o comércio exterior da França alcançou o total
jamais atingido de 1153OOOO00 de francos (4). Mas o efeito principal
dessa prosperidade crescente foi avivar o descontentamento dos burgueses. Por
mais dinheiro que acumulasse um negociante, um industrial, um banqueiro ou um
advogado, os privilégios políticos continuavam a ser-lhe negados. Não tinha
quase nenhuma influência na corte, não podia partilhar das honrarias mais altas
e, com exceção da escolha de alguns funcionários locais sem importância, não
podia sequer votar. Além disso, era olhado como um inferior pela nobreza ociosa
e frívola. De tempos a tempos, um orgulhoso conde ou duque consentia no
casamento de seu filho com a herdeira de um rico burguês; mas depois, era
possível que seguisse o costume de aludir a esse casamento como a
"adubagem de suas terras". À medida que a classe média se tornara mais
opulenta e mais cônscia da sua própria importância, era inevitável que os seus
membros passassem a melindrar-se com tais tentativas de discriminação social.
Mas o que acima de tudo fez da burguesia uma
classe revolucionária foi os grandes comerciantes, financistas e industriais
pretenderem um poder político correspondente à sua posição econômica.
(2) É necessário, .naturalmente, fazer uma
distinção entre as verdadeiras revoluções e as revoluções palacianas, muito comuns
nos Balcãs e na América latina, e que realidade pouco mais são do que
sucedâneos de eleições.
(3) l.
R. Gotthschalk, The Era of the French Revolution, pp. 30-31.
(4) Ibid., p. 44.
2) A Oposição ao mercantilismo
Entretanto, as pretensões políticas não foram a
única consequência da crescente prosperidade da classe média: também se clamava
cada vez mais pelo abandono da política mercantilista. Em tempos
passados o mercantilismo fora entusiasticamente acolhido pelos mercadores e
manufatureiros, porque proporcionava novos mercados e incentivava o comércio.
Mas isso fora no início da Revolução Comercial, quando o comércio ensaiava
ainda os primeiros passos. À medida que o comércio e a indústria se desenvolviam
durante os séculos subsequentes a burguesia adquiria cada vez mais
confiança na sua capacidade de se manter por si própria. Resultava daí uma
tendência crescente para considerar os regulamentos mercantilistas como
restrições opressivas. Os comerciantes viam com maus olhos os monopólios de que
gozavam companhias protegidas e a interferência na sua liberdade de comprar em
mercados estrangeiros. Os industriais irritavam-se com as leis de controle dos
salários, com o tabelamento de preços e as restrições impostas à aquisição de
matérias-primas fora da França e de suas colônias. Tais eram apenas algumas das
mais incômodas regulamentações aplicadas por um governo que agia com o duplo
objetivo do paternalismo e da auto-sufi-ciência econômica. Em tais condições,
talvez não seja de espantar que viesse a classe média a encarar a pura
liberdade econômica como um paraíso que merecia ser conquistado a qualquer
preço. Seja como for, dificilmente pode haver dúvidas quanto a ter sido uma das
principais causas da Revolução Francesa o desejo, por parte dos homens de
negócio, de se livrarem do mercantilismo.
3) A Sobrevivência dos privilégios
Um terceiro fator, de caráter precipuamente
econômico e que muito contribuiu para acender o rastilho da Revolução Francesa,
foi o sistema de privilégios arraigado na sociedade. Antes da Revolução, a
população da Franca se dividia em três grandes classes ou estados : a primeira
se compunha do clero, a segunda dos nobres e a terceira do povo. O Primeiro
Estado compreendia, na realidade, duas categorias diferentes: 1) o clero
superior, composto dos cardeais, arcebispos, bispos e abades, e 2) o clero
inferior, formado pelos padres das paróquias. Embora todos esses servidores da
Igreja passassem por fazer parte de um grupo privilegiado, um vasto abismo
separava os dois níveis. Os membros do clero inferior eram amiúde tão pobres
quanto os seus mais humilde.- paroquianos e em geral tendiam para simpatizar
com o homem comum. O clero superior, em contraste, vivia na abundância e
privava com as rodas elegantes e alegres da corte. Não compreendendo mais que
1% da população total, possuía, não obstante, cerca de 20% de toda a terra, sem
falar de enormes riquezas compostas de castelos, obras de arte, ouro e jóias.
Muitos bispos e arcebispos tinham rendimentos que orçavam em centenas cie
milhares de francos. Como é natural, muitos desses opulentos prelados pouco se
interessavam pelos assuntos religiosos. Alguns se envolviam na política,
ajudando o rei a manter o poder absoluto. Outros jogavam ou cultivavam vícios
ainda mais escandalosos.’ Não se pode, certamente, afirmar que todos fossem
depravados e remissos no cumprimento dos seus deveres
profissionais, mas o número dos corruptos, prepotentes e viciados era bastante
grande para convencer, muita gente de que a igreja estava podre até o cerne e
os seus próceres roubavam o povo e dilapidavam os recursos da nação.
O Segundo Estado, que compreendia a nobreza
secular, dividia-se também em duas castas subordinadas. No alto estavam os
"nobres da espada", cujos títulos remontavam aos suseranos feudais da
Idade Média. Abaixo deles colocavam-se os "nobres da toga" cujos avós
tinham comprado algum cargo judicial que lhes conferia um título de nobreza e o
direito de usar uma imponente beca de magistrado. Se bem que concomíntemente
menosprezados pelos seus colegas de linhagem mais antiga. os nobres da toga
formavam sem contestação possível o elemento mais inteligente e progressista
das classes superiores. Vários deles se tornaram reformadores ardorosos e
alguns desempenharam papel proeminente na própria Revolução. Pertenciam a esta
categoria críticos famosos da ordem estabelecida como Montesquieu, Mirabeau – Lafayette.
Eram os nobres da espada que realmente constituíam a classe privilegiada do
Segundo Estado. Monopolizavam, juntamente com o clero superior, as principais
posições do governo, delegando o verdadeiro trabalho a subordinados. Donos,
embora, de vastas propriedades rurais, residiam habitualmente em Versalhes e
confiavam aos seus intendentes e mordomos a tarefa de arrancar aos camponeses o
suficiente para atender às suas necessidades suntuárias. Entre esses perdulários
de sangue azul raros eram, na verdade, os que desempenhavam alguma função útil
Pareciam acreditar que os seus únicos deveres para com a sociedade fossem
adular o rei cultivar os refinamentos da vida da corte e, de quando em quando
proteger a arte clássica decadente. Num sentido muito real, a maioria deles
eram parasitas a consumir uma riqueza que outros produziam com o suor do seu
rosto.
4) O injusto sistema tributário
Entre os mais valiosos privilégios do clero e da
nobreza contavam-se os relativos aos impostos e o iníquo sistema tributário
pode ser considerado como outra cansa econômica da Revolução Francesa. Muito
antes de 1789 os impostos postos tenham passado, naquele pais, a se agrupar em
dois tipos principais Primeiro havia os impostos diretos, que compreendiam a
"talha", ou imposto sobre a propriedade real e pessoal e pessoal, a
"capitação", ou imposto por cabeça; e a "vintena", ou
imposto sobre a renda, a princípio na proporção de 5%, mas elevando-se
continuamente e, no século XVIII, a 10 e 11%.
Os tributos indiretos, ou taxas acrescentadas ao
preço das mercadorias e pagas em última análise pelo consumidor, compreendiam
mormente os direitos sobre mercadorias importadas do estrangeiro ou expedidas
de uma província francesa para outra. Além disso a "gabela", ou taxa
sobre o sal, pode também ser considerada uma forma de imposto indireto. Durante
algum tempo a produção do sal fora, na França, um monopólio do Estado, e cada
habitante era obrigado a comprar anualmente pelo menos sete libras desse artigo
nas salinas do governo. Ao custo da produção era adicionada uma taxa onerosa,
donde resultava ser o preço para o consumidor frequentemente de 50 ou 60 vezes
o verdadeiro valor do sal. Embora excessivamente pesados, os impostos indiretos
eram em geral distribuídos de maneira equitativa. Dificilmente poderia alguém
esquivar-se a pagá-los, fosse qual fosse a sua condição social. Com a maioria
dos impostos diretos, porém, o caso era bem diferente. O clero, graças ao
princípio medieval de que a propriedade da igreja não podia ser tributada pelo
estado, não estava sujeito ao pagamento da "talha" nem da
"vintena". Os nobres, em particular os de categoria superior,
valiam-se de sua influência junto ao rei para obter isenção, praticamente, de todas
as tributações diretas. Em consequência, o ônus principal de fornecer fundos ao
governo recaía sobre o povo, ou seja o Terceiro Estado, e como os artesãos e
operários quase nada possuíam que pudesse ser taxado, eram os camponeses e a
burguesia os mais sacrificados.
5) A sobrevivência do feudalismo
Como derradeira causa econômica da Revolução
Francesa podemos apontar a sobrevivência de restos do feudalismo na França,
ainda em 1789. Se bem que o sistema feudal ti vesse desaparecido desde muito
tempo, restavam alguns vestígios dele que serviam como úteis
instrumentos para manter o poder do soberano e as prerrogativas da nobreza. Em
algumas zonas atrasadas do país ainda subsistia a servidão, cujas proporções,
todavia, não devem ser exageradas. A maior estimativa até agora feita do número
de camponeses que viviam em condição servil é de 1 500 000, para uma população
rural de pelo menos 15 000000. A grande maioria dos camponeses era formada de
homens livres. Uma parte considerável era dona das terras que cultivava. Outros
eram rendeiros ou trabalhadores assalariados, mas parece que a maioria eram
meeiros que lavravam as terras dos nobres em troca de uma parte cia colheita,
geralmente um terço ou a metade. Entretanto, apesar de serem inteiramente
livres, esses camponeses estavam sujeitos a obrigações que vinham desde a época
feudal. Uma das mais odiosas era o pagamento de um censo ao senhor que, em
tempos passados, fora dono da terra. Outra era a doação, feita ao nobre da
localidade, de uma parte do produto da vencia de qualquer pedaço de terra. Em
acréscimo a tudo isso os camponeses tinham de contribuir com as
"banalidades", ou supostas compensações pelo uso de várias servidões
da propriedade senhorial. Na Idade Média, cada um pagava essa taxa para poder
servir-se do moinho de trigo, do lagar e do forno de pão. A despeito de muitos
camponeses, no século XVIII, possuírem tais instalações e não mais aproveitarem
facilidades oferecidas pelo senhor, as "banalidades" continuavam a
ser cobradas na importância original.
As mais exasperantes de todas as relíquias
do feudalismo eram, talvez, a "corvéia" e os privilégios de caça da
nobreza. A corveia outrora um compromisso de trabalhar, entre outras coisas,
na construção de estradas e pontes dentro do domínio senhorial, transformara-se
numa obrigação devida ao governo. Durante várias semanas de cada ano o lavrador
era forcado a abandonar as suas lidas para dedicar-se à reparação das estralas
reais. A nenhuma outra classe da população era exigida a execução de tais
serviços. Ainda mais vexativos eram para os elementos rurais os privilégios de
caça dos nobres. Desde tempos imemoriais o direito de cultivar o esporte
cinegético era considerado como um distintivo de aristocracia. O homem
bem-nascido devia ter plena liberdade de entregar-se a esse emocionante
passatempo onde quer que lhe aprouvesse. Naturalmente, uma coisa tão
insignificante como os direitos de propriedade dos camponeses não podia
constituir obstáculo para ele. Em algumas partes da França proibia-se aos
lavradores a capina ou a ceifa na época da procriação, para não molestar os
ninhos das perdizes. Coelhos, gralhas e raposas não podiam ser mortos apesar da
devastação que faziam nas searas ou entre as aves domésticas e animais novos.
Acresce que o camponês devia conformar-se com ver os seus campos, em qualquer
tempo, espezinhados pelos cavalos de um despreocupado bando de nobres
caçadores.
Causas Intelectuais
Todos os grandes levantes sociais dos tempos
modernos têm tido o seu fundamento de causas intelectuais. Para que um
movimento possa atingir as proporções de uma verdadeira revolução é necessário
que se apoie num corpo de idéias que forneçam não só um programa de ação mas
também uma visão gloriosa da nova ordem a ser por fim instaurada. Em grande
parte, tais idéias são produtos de ambições políticas e econômicas, mas a seu
tempo assumem o caráter de fatores independentes. Causas originárias
secundárias ou derivadas, acabam por se transformar em causas primárias, A sua
realização passa a ser aceita como um objetivo em si e conquista o devotamente
dos homens como o evangelho de uma nova religião. As causas intelectuais da
Revolução Francesa foram, em essência, um fruto do Iluminismo. Esse
movimento produziu duas interessantes teorias políticas que desde então têm
exercido sua influência pelos anos em fora. A primeira foi a teoria a de Locke,
Voltaire, Montesquieu e outros, a segunda foi a teoria democrática de
Rousseau. Ainda que fundamentalmente opostas, tinham elas certos elementos em
comum. Ambas se baseavam na premissa de que o estado é um mal necessário e de
que o governo repousa sobre uma base contratual. Cada uma tinha a sua doutrina
de soberania popular, embora discrepassem quanto à interpretação. E,
finalmente, ambas defendiam até certo ponto os direitos naturais do indivíduo.
1) A Teoria liberal de John Locke
O pai da teoria política liberal dos séculos XVII
e XVIII foi John Locke (1632-1704), se bem que algumas de suas doutrinas já
tivessem sido sugeridas pelas obras de John Milton (1608-74); James
Harrington (1611- 77) e Algernon Sydnev (1622-83). A filosofia politica
de Locke esta exposta mormente no Segundo tratado do governo civil, publicado
em 1690. Desenvolvia ele neste livro uma teoria de governo limitado com a qual
se propunha, em parte, justificar o novo sistema de governo parlamentar
estabelecido na Inglaterra como resultado Revolução Gloriosa. Segundo ele,
todos os homens viviam originalmente num estado natural em que prevaleciam a
liberdade e a igualdade absolutas e não existia governo de espécie alguma. A
única lei era a lei da natureza, que cada indivíduo punha em execução por sua
própria conta a fim de proteger os seus direitos naturais à vida, à liberdade e
à propriedade. Não tardaram, porém, a perceber os homens que os inconvenientes
do estado natural superavam de muito as vantagens. Como cada um tentasse impor
os seus próprios direitos, os resultados inevitáveis eram a confusão e a
insegurança. Consequentemente, os indivíduos convieram em estabelecer uma
sociedade civil, instituir um governo e ceder-lhe certos poderes. Esse governo
não era, porém, um governo absoluto. O único poder que s conferia era o de
executar a lei natural. Uma vez que o estado nada mais é do que o poder
conjunto de todos os membros da sociedade, sua autoridade "não pode ser
maior do que aquela que essas pessoas possuíam no estado natural, antes de
formarem um grupo social e de cederem-na à comunidade" (5).
Todos os direitos que não são expressamente cedidos ficam reservados às
próprias pessoas. Se o governo se exceder ou abusar da autoridade
explicitamente outorgada pelo contrato político, torna-se tirânico e o povo tem
então o direito de dissolvê-lo ou de se rebelar contra êle e derrubá-lo.
(5) Second Treatatise of Civil Government (Everyman’s Library), p. 184.
Locke condenava o absolutismo sob todas as
formas. Denunciou a monarquia despótica, mas não foi menos severo em suas
míticas à soberania absoluta dos parlamentos. Embora defendesse supremacia do
poder legislativo, considerando o executivo acima de tudo como um agente seu,
recusava, não obstante, conceder um poder ilimitado aos representantes do povo.
Alegando que o governo fora instituído entre os homens para a
preservação da propriedade (que definia geralmente como compreendendo a vida, a
liberdade e os bens materiais) (6), negava autoridade a qualquer
agente político para usurpar os direitos naturais do indivíduo. A lei da
natureza, que corporifica esses direitos, é uma limitação automática imposta a
todos os ramos do governo. Ainda que a grande maioria dos representantes do
povo reclamasse a restrição da liberdade de palavra ou o confisco e a
redistribuição da propriedade, tal coisa não se poderia fazer legalmente. Se.
por outro lado. fosse feita ilegalmente, justificaria a adoção de medidas
eficazes de resistência por pane da maioria dos cidadãos. Locke andava muito
mais de proteger a liberdade individual que de promover a estabilidade ou o progresso
social. Se fosse forçado a escolher, teria preferido os males da anarquia aos
do despotismo sob qualquer forma.
Poucos filósofos políticos têm exercido mais
influência do que Locke na história do mundo Não só as suas doutrinas dos
direitos naturais, do governo limitado e do direito de resistência à tirania
foram uma fonte importante da teoria da" Revolução Francesa, senão que
também encontraram pronta aceitação na América. Delas deriva quase todo o
fundamento teórico da revolta colonial contra a opressão britânica. Refletem-se
com tal evidência na Declaração de Independência dos Estados Unidos que
passagens inteiras deste documento dão a impressão de ter sido copiadas do Secundo
tratado. Os princípios de Locke influíram também na redação da Constituição
e sobretudo nos argumentos com que Hamilton. Madison e Jay instavam, no Federalist
(*), pela sua adoção. Mais tarde, quando o novo governo promulgou a Lei dos
Estrangeiros e a Lei de Sedição, foi escudando-se principalmente nas teorias de
Locke que Madison e Jefferson, nas revoluções da Virgínia e do Kentucky.
apelaram para os diversos estados a fim de que resistissem a essa usurpação de
poder.
(6) Ibid., p. 159.
(*) Série de artigos publicados por esses
políticos em 1787-88 no Indcpendcnt ce Journal de Nova Iorque e reunidos
posteriormente em livro. (N. dos Trads.).
2) A Teoria Política de Voltaire
Na França, os maiores expoentes da teoria
política liberal foram Voltaire (1694-1778) e o Barão de Montesquieu
(1689-1755). Como já foi salientado, Voltaire considerara o cristianismo
ortodoxo como o pior dos inimigos da humanidade, mas também votava grande
desprezo ao governo despótico. Durante o seu exílio na Inglaterra estudara os
livros de Locke, cujas rigorosas afirmativas de liberdade individual lhe causaram
profunda impressão. Voltando para a França, ainda relativamente moço, dedicou o
resto da sua vida em grande parte à luta pela liberdade intelectual, religiosa
e política. Em comum com Locke. Voltaire concebia o governo como um mal
necessário, com poderes que deviam limitar-se ao de fazer observar os direitos
natura:? Sustentava que todos os homens são dotados pela natureza de
direitos iguais à liberdade, à propriedade e à proteção das leis. Não era,
porém, um democrata. Inclinava-se a ver a forma ideal de governo quer numa
monarquia esclarecida, quer numa república dominada pela classe média. Nunca
perdeu o temor das massas. Receava até que os seus ataques à religião
organizada pudessem incitar a multidão a atos de violência. Conta-se que, após ter sido
assaltado e roubado por alguns camponeses, frequentou a igreja durante certo
tempo a fim de convencer os aldeões de que ainda acreditava em Deus.
3) a influência de Montesquieu
Um pensador político mais profundo e sistemático
do que Voltaire foi o Barão de Montesquieu, seu contemporâneo mais velho.
Embora sendo, como Voltaire, um estudioso de
Locke e admirador ardente das instituições britânicas, Montesquieu foi uma figura
sem par entre os filósofos políticos do século XVIII. O seu célebre Espírito
das Leis introduziu novos métodos e novas concepções na teoria do estado.
Ao invés de tentar fundar uma ciência do governo pela dedução pura, seguiu o
método aristotélico de estudar os sistemas políticos concretos, tal como se
supunha que tivessem funcionado no passado. Inclinando-se a desdenhar as idéias
de Locke sobre os direitos naturais e a origem contratual do estado, ensinou
que o significado da lei natural deve ser procurado nos fatos da história.
Negou, além disso, que existisse uma forma perfeita de governo, adequada a
todos os povos em quaisquer condições. Afirmava, ao
contrário, que as instituições políticas, para ser eficazes, devem araizar-se
com as condições físicas e o nível de progresso social das nações a que
pretendem servir. Por isso achava que o despotismo é apropriado aos países de
vasto território, a monarquia limitada lanho médio e o governo republicano aos
pequenos. Para o seu próprio país, a França, a forma de governo mais
aconselhável ser anarquia limitada, uma vez que considerava a nação grande
demais para ser transformada em república, a não ser dentro dos moldes
de uma federação.
Montesquieu é sobretudo famoso pela sua teoria da
separação dos poderes. A imitia que é tendência natural do homem abusar
de qualquer parcela de poder que lhe seja confiada e que, por conseguinte, todo
governo. seja qual for a sua forma, é suscetível de degenerar em
despotismo. A fim de prevenir tais resultados, a autoridade do governo
deve ser dividida nos seus três ramos naturais: o poder legislativo, o
executivo e o judiciário. Todas as vezes que se permite sejam enfeixados
dois ou mais desses poderes nas mesmas mãos a liberdade parece, declarava
ele. O único meio eficaz de impedir a tirania é capacitar cada ramo do governo
a agir como um freio para os outros dois. O executivo, por exemplo, deve dispor
do veto para impedir as transgressões do legislativo. A legislatura, por
sua vez, deverá ter o poder do "impeachment" para restringir o
executivo. E, por fim, deve existir um judiciário independente, munido de
poderes para proteger os direitos individuais contra os atos arbitrários tanto
do legislativo como do executivo. Esta teoria favorita de Montesquieu não
visava, por certo, facilitar a democracia. Bem ao contrário, seu objetivo
principal era o de impedir a supremacia absoluta da maioria, expressa como
normalmente o seria pelos representantes do povo no corpo legislativo. É um
exemplo típico da aversão que a burguesia daquela época votava a qualquer forma
de governo despótico, fosse ele de uma minoria ou mesmo da maioria. Mas nem por
isso teve menos influência o princípio de separação dos poderes de Montesquieu.
Foi incorporado ao primeiro governo estabelecido durante a Revolução Francesa e
adotado, com pequenas modificações, na Constituição dos Estados. Unidos (7).
(7) No referente à influência de Montesquieu sobre
os fundadores do govêrno norte-americano, consultai- E. M. Burus. James Madison:
Philosopher of the Constitution, pp. 180-83.
O segundo dos grandes ideais políticos que
constituiu parte importante dos fundamentos intelectuais da Revolução Francesa
foi o ideal da democracia. Em contraste com o liberalismo, a democracia se
interessava, e ainda se interessa, menos pela defesa dos direitos individuais
do que pela instauração do governo popular. Na verdade, em seu significado
histórico ela é inseparável da idéia de soberania das massas. O desejo da
maioria dos cidadãos é a lei suprema da nação, porque a voz do povo é a voz de
Deus. Supõe-se em geral que num regime democrático a vontade da minoria
continue a desfrutar inteira liberdade de expressão, mas isso não acontece
necessariamente. O único direito soberano da minoria é o de tornar-se maioria.
Enquanto um grupo qualquer permanecer como minoria, os seus componentes não
poderão reivindicar nenhum direito de ação individual além do controle do
estado. Muitos expoentes da democracia na nossa geração hão de negar que isto
seja verdade e afirmarão com veemência o seu devotamente à liberdade da palavra
e da imprensa como direitos que o governo não pode infringir legalmente. Tal
atitude, porém, se origina da mescla de liberalismo que se observa no ideal
democrático corrente. Na verdade, democracia e liberalismo são hoje usados como
se fossem expressões sinônimas. Na sua origem, entretanto, eram ideais
perfeitamente distintos. A democracia histórica também incluía a crença na
igualdade natural de todos os homens, a oposição aos privilégios hereditários e
uma fé inabalável na sabedoria e na virtude das massas.
Rousseau, o fundador da democracia
O fundador da democracia tal como ficou acima
descrita foi Jean-Jacques Rousseau (1712-78). Como Rousseau foi também o pai do
romantismo, era natural que as suas idéias políticas tivessem um forte colorido
sentimental. Além fundador da disso, a coerência nem sempre foi uma
virtude cardeal do seu raciocínio. As mais significativas de suas obras de
teoria política são o Contrato social e o Discurso sobre a origem da
desigualdade. Defendia, em ambas, a tese em voga de que o homem viveu
originalmente no estado natural — o qual, em contraste com Locke, ele
considerava como um verdadeiro paraíso. Não era pesado a ninguém manter os seus
direitos contra os demais. Havia, na verdade, pouquíssimas oportunidades de
conflito, uma vez que durante muito tempo não existiu a propriedade privada e
cada homem era igual a seu semelhante. Mas por fim surgiram certos males,
devidos mormente ao fato de alguns homens terem demarcado pedaços de terra e
dito a si mesmos: "Esta terra é minha" Foi assim que se desenvolveram
vários graus de desigualdade e, em consequência, passaram logo a dominar nas
relações humanas a " impostura fraudulenta", a "pompa
insolente" e a "ambição insaciável" (8). A única esperança de
garantir os direitos de cada um foi então organizar uma sociedade civil e ceder
todos esses direitos à comunidade. Isto se realizou por meio de um contrato
social em que cada indivíduo concordava em se submeter à vontade cia maioria.
Foi assim que nasceu o estado.
(8) Discourse on the Origin of Inequality (Everyman’s
Library), p. 207.
A concepção de soberania de Rousseau
Rousseau desenvolveu uma concepção de soberania
completamente diversa da dos liberais. Ao passo que Locke e os seus adeptos
haviam ensinado que somente uma parte do poder soberano é cedida
ao estado, permanecendo o resto nas mãos do povo, Rousseau sustentava que a
soberania é indivisível e que toda ela passa à comunidade quando se constitui
a sociedade civil. Insistia, além disso, em que ao homologar cada indivíduo o
contrato social, fazia entrega de todos os seus direitos à comunidade e
concordava em se submeter inteiramente à vontade geral. Segue-se daí que o
poder soberano do estado não está sujeito a quaisquer limitações. A vontade
geral, expressa pelo voto da maioria, é o tribunal de última instância. O que a
maioria decide é sempre justo no sentido político e torna-se absolutamente
obrigatório para cada um dos cidadãos. O estado, que na prática significa a
maioria, é legalmente onipotente. Isso, porém, não implica realmente, de acordo
com Rousseau, que a liberdade do individuo seja aniquilada. Pelo contrário, a
sujeição ao estado tem o efeito de fortalecer a liberdade autêntica. Ao
cederem os seus direitos à comunidade, os indivíduos não fazem mais que trocar
a liberdade animal do estado de natureza pela verdadeira liberdade de criaturas
racionais obedientes à lei. Obrigar um indivíduo a submeter-se à vontade geral
é, consequentemente, tão-só "forçá-lo a ser livre”. É preciso compreender,
aliás, que quando Rousseau falava no estado não queria referir-se ao governo.
Considerava o estado como a comunidade politicamente organizada, cuja função
soberana é expressar a vontade gera. A autoridade do estado não pode ser
representada, mas deve expressar-se diretamente através da promulgação, pelo
próprio povo, de leis fundamentais. O governo, por outro lado é
simplesmente o agente executivo do estado. Não tem por função formular a
vontade geral mas tão somente executá-la. Além disso, a comunidade pode
estabelecer ou destituir o governo "sempre que o desejar" (9).
(9) The
Social Contract Everyman Library), p. 88.
A influência de Rousseau
Seria difícil exagerar a influência da teoria
política de Rousseau. Seus dogmas de igualdade e de supremacia da maioria foram
a principal inspiração da segunda etapa da Revolução Francesa. Entre os seus
discípulos mais fervorosos contavam-se doutrinários radicais como Robespierre.
Mas a influência de Rousseau não se confinou dentro dos limites do país natal.
Algumas de suas teorias passaram à América e encontraram eco em certos
princípios da democracia jacksoniana, embora seja muitíssimo improvável que a
maioria dos sequazes de Jackson tivesse jamais ouvido falar eu: Rousseau. Os
idealistas românticos alemães que, no começo do século XIX, glorificaram o
estado como "Deus na história" também parecem ter a sua dívida para
com a filosofia do Contrato social. Das doutrinas rousseaunianas da
onipotência legal do estado e de que a verdadeira liberdade consiste na
submissão à vontade geral não era difícil passar à exaltação do Estado como um
objeto de culto e à redução do indivíduo ao papel de um simples dente na engrenagem
política (10). Embora Rousseau tivesse sugerido que a maioria
ficaria submetida a restrições morais e insistido no direito do povo a
"derrubar" o governo, isso não bastava para contrabalancear os
efeitos da importância conferida à soberania absoluta
A influência da nova teoria econômica
Como derradeira causa intelectual da Revolução
Francesa cumpre mencionar, ao menos de passagem, a influência da nova teoria
econômica. Na segunda metade do século XVIII alguns escritores brilhantes
começaram a atacar os postulados tradicionais no tocante ao controle público da
produção e do comércio. O alvo principal da sua crítica era a política
mercantilista. A nova teoria econômica alicerva-se em grande parte nas
concepções básicas do Iluminismo, em especial na idéia de uma mecânica
universal governada por leis inflexíveis. Passou a prevalecer então o conceito
de que a esfera da produção e da distribuição da riqueza estava submetida a
leis não menos irresistíveis que as da física e da astronomia. A nova teoria
econômica também pode ser considerada como complemento natural do liberalismo
político. Os objetivos principais de ambos eram assaz semelhantes: reduzir os
poderes do governo a um mínimo compatível com a segurança e preservar para o
indivíduo a maior parcela possível de liberdade na prossecução dos seus
intentos.
(10) A teoria política dos românticos é
examinada mais adiante. pp. 645-49.
As doutrinas dos fisiocratas
Os primeiros campeões dessa nova atitude em face
dos problemas econômicos foram os componentes de um grupo conhecido como os
fisiocratas. Os mais eminentes dentre eles foram François Quesnay (1694-1774),
autor do Tableau Economique, a bíblia da fisiocracia; o Marquês de
Mirabeau (1715-89), pai do ilustre orador e líder da Revolução Francesa; Dupont
de Nemours (1739-1817), antepassado da família Dupont dos Estados Unidos; e
Anne Robert Turgot (1727-81), ministro das finanças durante breve período, sob
Luís XVI (11). Os fisiocratas condenaram desde o início a doutrina
mercantilista. Um dos seus grandes objetivos era provar que os empreendimentos naturais
como a agricultura, a mineração e a pesca são mais importantes para a
prosperidade nacional do que o comércio. A natureza, afirmavam eles, é a
verdadeira produtora de riquezas, e por conseguinte devem ser mais prezadas
aquelas indústrias que realmente exploram os seus recursos e destes extraem
coisas de valor para o homem. O comércio é essencialmente estéril, visto que se
limita a transferir de uma pessoa para outra mercadorias já existentes. Com o
correr do tempo estas doutrinas vieram a ser subordinadas a uma nova idéia que
os fisiocratas colocaram acima de todas as demais. Era a idéia de libertar a
atividade econômica das restrições sufocantes impostas pelo estado. Exigiam os
fisiocratas que êle se abstivesse de qualquer interferência nos negócios,
exceto na medida em que isso fosse indispensável à proteção da vida e da
propriedade. Nunca se deveria fazer nada para embaraçar a ação das leis
econômicas naturais. Esta doutrina era concisamente expressa pela pitoresca
máxima: Laissez faire et laissez passer, le monde va de lui-même (deixai
fazer e deixai passar, o mundo marcha sozinho). O ideal do laissez faire não
tardou a incorporar outras concepções -como a da santidade da propriedade
privada e a dos direitos de livre contrato e livre produção. Era, assim, uma
verdadeira antítese da política restritiva do mercantilismo.
(11) Outro economista, Vincent de Gournay,
(1712-59), influenciou os fisiocratas mas nunca fêz parte da escola.
Atribui-se-lhe comumente a expressão laissez faire.
A Economia de Adam Smith
O maior de todos os economistas da época do
Iluminismo e um dos mais brilhantes de todos os tempos foi Adam Smith (1 723-90).Natural
da Escócia, Smith começou a sua carreira como prelecionador de literatura
inglesa na Universidade de Edimburgo, sendo pouco depois contemplado com a
cadeira de lógica do Glasgow College. Em 1759 tornou-se famoso com a
publicação da Teoria das sentimentos s morais. Conquanto se
viesse interessando desde algum tempo pelos problemas de economia política,
esse interesse só tomou vulto após uma estada de dois anos na França, para onde
tinha ido como preceptor do jovem Duque de Buccleuch. Travou conhecimento .ali
com os corifeus da escola fisiocrática e aprouve-lhe verificar que certas
teorias destes coincidiam com as suas. Descreveu a economia de Quesnay,
"com todas as suas imperfeições", como "a coisa mais próxima da
verdade que já se publicou sobre os princípios dessa ciência". Nunca se
alistou, porém, sob o estandarte dos fisiocratas, apesar da inegável influência
que muitas doutrinas da escola exerceram sobre êle. Em 1 776 publicou a Indagação
da natureza e das causas da riqueza das nações, geralmente considerada como
o mais influente tratado de economia que já se escreveu. Nessa obra asseverava
que o trabalho, mais do que a agricultura ou a generosidade da natureza, é a
verdadeira fonte de riqueza. Embora aceitasse em síntese o princípio do laissez
faire, admitindo que a melhor maneira de promover a prosperidade geral
seria permitir que cada um seguisse os seus próprios interesses, era de opinião
que certas formas de interferência governamental seriam desejáveis. O estado
deveria intervir para prevenir a injustiça e a opressão, fazer progredir a
educação e proteger a saúde pública, bem assim como para manter empresas
necessárias que o capital privado nunca poderia instalar. Apesar dessas
limitações bastante amplas ao princípio do laissez faire, a
Riqueza das nações de Smith tornou-se a sagrada escritura dos
economistas individualistas dos séculos XVIII e XIX. Sua influência como causa
da Revolução Francesa foi indireta, mas nem por isso deixou de ser profunda.
Fornecia uma resposta categórica argumentos mercantilistas, fortalecendo
assim a ambição, por parte da burguesia, de pôr termo a um sistema político que
continuava a querer o caminho da liberdade económica.
2. A derrubada do velho regime
No começo do estio de 1789, o vulcão do
descontentamento na França entrou em erupção; A causa imediata deste fato foi o
iminente colapso financeiro, resultado das guerras dispendiosas e das
extravagâncias reais. A dívida pública, que em 1 786 alcançara um total
equivalente a 600 milhões de dólares, crescia cada vez mais de ano para ano. As
receitas existentes mal bastavam para pagar os juros, sem falar na amorfização
do capital. A única esperança de desafogo parecia consistir no lançamento de
novos impostos.
A causa imediata da Revolução Francesa
Com este fim em vista Luís XVI convocou em 1 787
uma Assembleia de Notáveis, confiando em que os principais magnatas do
reino se dispusessem a arcar com uma parte do ônus fiscal. Os
nobres e bispos, no entanto, recusaram abrir mao do seu privilegio de isenção de
impostos. Foi então que se fez ouvir a exigência de uma convocação dos Estados
Gerais. Esta assembleia, composta de representantes dos três grandes estados ou
classes da nação, daria a conhecer ao rei a vontade do povo no tocante à
maneira de enfrentar a crise financeira. No verão de 1 788 Luís XVI cedeu ao
clamor popular, marcando para maio do ano seguinte a reunião dos Estados
Gerais.
O triunfo do Terceiro Estado
Mal se haviam congregado as três ordens quando
surgiu uma controvérsia sobre o sistema de votação. Nos primeiros Estados
Gerais, instaurados no século XIV por Filipe o Belo, cada uma das classes — o
clero, a nobreza e o povo — tinha votado como uma unidade. Mas
isso fora numa época em que o terceiro Estado quase não tinha significação.
Durante os séculos seguintes a burguesia crescera e passara a ser o grupo
econômico mais poderoso da nação. Era, portanto, inevitável que os líderes
burgueses não se conformassem com uma disposição pela qual os votos das duas
classes superiores poderiam obstar a tudo que o Terceiro Estado pretendesse
fazer. Exigiram, pois, que as três ordens formassem uma assembléia única e o
voto fosse individual. Uma vez que já se tinha concedido aos plebeus um número
de representantes igual ao das duas outras classes juntas, era evidente que o
Terceiro Estado, conseguindo o apoio ocasional de alguns elementos descontentes
da nobreza ou do clero, tornar-se-ia capaz de controlar toda a assembléia. Ao
cabo de um mês de disputas, em 17 de junho, o Terceiro Estado tomou a
audaciosa decisão de proclamar-se Assembléia Nacional e convidou os
representantes das classes privilegiadas a participar dos trabalhos. Muitos
atenderam ao convite. No espaço de dois dias a maioria do clero havia aderido,
bem assim como alguns nobres. Mas então o rei interveio. Na manhã de 20 de
junho, quando os deputados rebeldes quiseram reunir-se no seu salão,
encontraram as portas guardadas por soldados. Não havia outra alternativa senão
submeter-se ou desafiar o poder soberano cio próprio monarca. Confiantes no apoio
da maioria do povo, os representantes deste e seus aliados retiraram-se para um
recinto das vizinhanças, usado ora como academia de equitação, ora como quadra
de jogo da péla. Ali, sob a chefia de Mirabeau e do padre Sieyès,
comprometeram-se por um juramento solene a não se – arar enquanto não houvessem
redigido uma constituição para a França. Esse Juramento do Jogo da
Péla, em 20 de junho de 1789, foi o verdadeiro início da Revolução Francesa.
Reivindicando a autoridade de reconstituir o governo em nome do povo, os
Estados Gerais não apenas protestavam contra o governo arbitrário de Luís XVI
mas também afirmavam seu direito de agir como o poder supremo da nação. A 27
de junho o rei reconheceu virtualmente esse direito, ordenando aos demais
representantes das classes privilegiadas que se reunissem ao Terceiro Estado
como membros de uma Assembléia Nacional.
A Primeira Fase da Revolução
O curso da Revolução Francesa assinalou-se por
três grandes fases, a primeira das quais se estendeu de junho de 1 789 a agôsto
de 1 792. Durante a maior parte deste período os destinos da França estiveram
nas mãos da Assem- bléia Nacional, dominada pelos líderes do Terceiro Estado.
Foi. em conjunto, uma fase moderada, uma fase da classe média. As massas não
tinham ainda conquistado nenhuma parcela de poder político nem estavam em
condições de assumir o controle do sistema econômico. Afora a destruição da
Bastilha, em 14 de julho de 1789, e o assassínio de alguns componentes da
guarda real, houve relativamente pouca violência tanto em Paris como em
Versalhes. Em algumas zonas do interior, contudo, prevalecia um espírito mais
turbulento. Muitos camponeses, impacientando-se com a demora na concessão de
reformas, resolveram tomar o caso nas próprias mãe s Armados de forcados e foices,
dispuseram-se a deitar abaixo tudo que pudessem do antigo regime. Demoliram
castelos de nobres detestados, saquearam mosteiros e residências de bispos e
assassinaram alguns dos infelizes aristocratas que ofereceram resistência.
Essas violências, ocorridas na maior parte durante o verão de 1 789. muito
contribuíram para atemorizar as classes superiores, levando-as a abrir mão de
alguns dos seus privilégios.
Resultados da Primeira Fase: Abolição dos Privilégios Feudais.
Os resultados mais importantes da primeira fase
da Revolução Francesa foram as conquistas da Assembléia Nacional entre 1 789 e
1 791. O primeiro deles foi a destruição dos remanescentes do feudalismo.
Deveu-se isso em grande parte a atitude de rebeldia demonstrada pelos camponeses.
No começo de agosto de 1789 a Assembleia Nacional recebeu noticias alarmantes
sobre a anarquia reinante nas aldeias que muitos deputados não tardaram a
reconhecer a necessidade urgente de se fazerem certas concessões. A 4 de agosto
um certo nobre propôs, em eloquente discurso, que todos os seus pares
renunciassem aos privilégios feudais. Esta moção provocou o entusiasmo
tempestuoso da Assembléia, em parte devido ao medo e em parte, ao zelo
revolucionário. Nobres, clérigos e burgueses porfiavam entre si na sugestão de
reformas. Antes de findar a noite tinham sido varridos inúmeros res-
quícios da velha estrutura dos direitos
adquiridos. Aboliram-se expressamente os dízimos e as obrigações feudais dos
camponeses. A servidão foi eliminada. Declararam-se extintos os privilégios de
caça dos nobres, a isenção de impostos e os monopólios de toda sorte foram
sacrificados como contrários à igualdade natural. Conquanto os nobres não
tivessem renunciado a todos os seus direitos, o efeito final dessas reformas
das "Jornadas de Agosto" foi anular as distinções de classe e de
nível social e colocar todos os franceses em igualdade de situação
perante a lei (12).
(12) Juntamente com essas reformas ligadas à
extinção dos monopólios e dos privilégio feudais, as corporações foram também
abolidas e proibiu-se aos trabalhadores formar uniões.
2) A Declaração dos Direitos dos Homens
Após derrubar os privilégios a Assembléia
consagrou-se ao preparo de uma carta de liberdades. O resultado foi a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em setembro de l 789.
Parcialmente modelada pelo Bill of Rights dos ingleses e adotando
os ensinamentos dos filósofos políticos liberais, a Declaração francesa é um.
típico documento da classe média. Tanto a propriedade como a liberdade, a
segurança e a "resistência à opressão" são declaradas direitos naturais.
Ninguém pode ser despojado de suas posses a não ser em caso de necessidade
pública, e sob a condição estrita de ser "prévia e equitativamente
indenizado". Cumpre, outrossim, ter na devida consideração os direitos
individuais. A liberdade de palavra, a tolerância religiosa e a liberdade da
imprensa são declaradas invioláveis. Todos os cidadãos têm direito a tratamento
igual nos tribunais. Ninguém pode ser preso ou punido de qualquer forma senão
em virtude de processo judiciário. A soberania reside no povo e os funcionários
do governo tornam-se passíveis de demissão no caso de abusarem dos poderes que
lhes são conferidos. Não se faz qualquer referência aos direitos do homem comum
a uma parte equitativa da riqueza por ele produzida, nem tampouco à proteção do
estado aos incapacitados de ganhar a vida. Os autores da Declaração dos
Direitos não eram socialistas nem estavam particularmente interessados no
bem-estar econômico das massas.
3) A secularização da Igreja
Outro feito importante da Assembléia Nacional foi
a secularização da igreja No antigo regime o clero superior fora uma
casta privilegiada, recompensando os favores que lhe prestava o rei com o seu
sólido apoio ao governo absoluto. Em consequência, a igreja
passara a ser considerada como um instrumento de cobiça e
opressão quase tão odioso quanto a própria monarquia. Acresce que as
instituições eclesiásticas possuíam vastas propriedades e o novo governo
revolucionário necessitava urgentemente de fundos. Portanto, em novembro de 1
789 a Assembléia Nacional resolveu confiscar as terras da igreja e usá-las como
garantia para a emissão de assignats (papel-moeda). Em julho do ano
seguinte foi posta em vigor a Constituição Civil do Clero, dispondo que todos
os bispos e padres fossem eleitos pelo povo e ficassem submetidos à autoridade
do estado. Percebendo salários pagos pelo tesouro público, eram obrigados a
jurar fidelidade à nova legislação. A secularização da igreja implicava numa
separação parcial de Roma. O objetivo visado pela Assembléia era fazer da igreja
católica da França uma verdadeira instituição nacional, conservando apenas uma
submissão nominal ao Vaticano. Como o Papa condenasse esses dispositivos e
proibisse qualquer bispo ou padre de aceitá-los. resultou dai a divisão do
clero francês em dois grupos diferentes. Uma minoria prestou juramento de
fidelidade à Constituição Civil e passou daí em diante a ser conhecida como o
clero "juramentado". Quanto aos demais, alguns fugiram do país, mas
muitos ali permaneceram e se uniram aos nobres reacionários no empenho de
excitar o ódio contra todo o programa da revolução.
4) A Constituição de 1791
Só em 1 791 a Assembléia conseguiu completar a
sua tarefa primordial de redigir uma nova constituição para o país. Tinham sido
muito numerosos os problemas de interesse mais imediato a absorver-lhe a
atenção. Além disso, o governo autocrático já era uma coisa do passado.
A constituição, tal como foi finalmente
promulgada, valia como testemunho eloquente da posição dominante que então
gozava a burguesia. A França não se tornou uma república democrática, mas sim
uma monarquia moderada em que o poder supremo era virtualmente monopolizado
pelos favorecidos da fortuna. O privilégio do voto restringia-se aos que
pagassem um imposto direto equivalente a três dias de salário, enquanto a
elegibilidade para os cargos importantes era limitada aos cidadãos de certas
posses. No tocante à estrutura do governo, o característico principal era a
separação dos poderes. Os fundadores do novo sistema haviam feito suas as
idéias de Montesquieu sobre a independência do legislativo, do executivo e do
judiciário. O poder de fazer leis era confiado a uma Assembléia Legislativa
eleita indiretamente pelo povo, de acordo com um processo semelhante àquele que
se adonou originalmente para a escolha do presidente dos Estados Unidos. O rei
foi privado do controle que havia exercido sobre o exército, a igreja e a
administração local. Proibia-se aos seus ministros comparecerem à Assembléia e
ele próprio não tinha qualquer interferência no processo da legislação, salvo o
veto suspensivo podia ser anulado pelo voto da Assembléia em três seções
consecutivas. Destarte o novo sistema, ainda que muito afastado da monarquia
absoluta, decididamente não era um governo que as massas pudessem considerar
como seu.
O segundo Período ou Fase radical da Revolução
No verão de 1792 a Revolução Francesa entrou numa
segunda fase que durou cerca de dois anos. Este período diferiu do primeiro em
muitos aspectos. Para começar, a França era agora uma república. A 101
de agosto a Assembléia Legislativa votou a suspensão do rei e ordenou que se
elegesse uma Convenção Nacional para redigir uma nova
constituição. Desta vez a eleição se faria por sufrágio universal masculino.
Pouco depois Luís XVI foi submetido a julgamento, sob a acusação de
conspirar com estrangeiros contra a Revolução, e em 21 de janeiro de 1793 foi
decapitado. Ademais de seu caráter republicano, a segunda fase diferiu da
primeira em ser dominada pelas classes inferiores. O curso da Revolução já não
era ditado por membros mais ou menos conservadores da burguesia. O lugar destes
fora tomado por extremistas que representavam o proletariado de Paris e a
filosofia liberal de Voltaire e Montesquieu cedera o passo às doutrinas
radicais e igualitárias de Rousseau. Outra diferença consistiu no caráter mais
violento e sanguinário desta segunda fase. Foi o período não só da execução do
rei mas também dos massacres de setembro (1 792) e do regime de Terror,
que se estendeu do verão de 1 793 ao verão do ano seguinte.
Causas da transição para uma fase radical
Que fatores poderão explicar esta espetacular
transição de uma fase relativamente moderada, dominada pela classe média, para
uma fase de radicalismo e de agitações? Em primeiro lugar, podemos mencionar as
esperanças frustradas proletariado. No seu início, a Revolução
parece acenar com promessas maravilhosas de igualdade e justiça
para todos os cidadãos. Isto se aplica particularmente ã Declaração dos
Direitos, muito embora encarecesse ela a inviolabilidade da propriedade privada.
Ao cabo, porém, de três nos de revolução social e política, era tão difícil
quanto antes ao operário urbano ganhar o seu pão — senão mais difícil ainda, em
vista da desorganização econômica. E não era só: depois de adotada a
Constituição de 1791 homem comum descobriu que nem mesmo votar podia.
Tornara-se cada vez mais claro que ele não tinha feito outra coisa senão mudar
de patrões. Num tal estado de espírito, não podia deixar de sentir-se seduzido
pelas pregações dos extremistas que prometiam conduzi-lo a uma canaã de
segurança e fartura. Uma segunda causa dessa transição para uma fase radical
foi. o impulso adquirido pela própria Revolução. Todos os grandes
movimentos dessa espécie geram uma atmosfera de descontentamento, a qual é
respirada mais profundamente por alguns homens do que por outros.
Resulta daí o apaiecimento de uma espécie de revolucionário profissional,
eternamente insatisfeito por mais que se tenha realizado. Acusa os chefes da
revolução em sua em sua fase preliminar com maior violência ainda do que
condena os adeptos do antigo regime. Para ele, as mais horríveis matanças e o
mais completo caos não são um preço demasiado a pagar pela realização dos seus
ideais. Assassinará os seus mais íntimos companheiros, tão logo discordarem
dele, com a mesma presteza com que liquidará o mais detestado reacionário. É o
equivalente político do fanático religioso para quem a espada e a fogueira são
os instrumentos indicados para après?:.- a vinda do reino da virtude e da paz
de Deus.
Mas a causa mais importante da vitória dos
radicais talvez tenha sido a guerra com o estrangeiro. Em vários países
europeus a marcha da Revolução Francesa tinha sendo encarada com
crescente sobressalto pelos governantes reacionários. Isto se verificava
sobretudo na Áustria e na Prússia, onde se haviam refugiado numerosos
"emigrados", ou monarquistas franceses, que procuravam convencer os
soberanos daqueles países do perigo que a Revolução representava para a Europa.
Além disso, a rainha francesa Maria Antonieta, que pertencia à família dos
Habsburgos, fazia desesperados apelos ao imperador para que viesse em auxílio
de seu marido. Em agosto de 1 791 os governantes da Áustria e da Prússia
lançaram conjuntamente a Declaração de Pillnitz, em que afirmavam ser a
restauração da ordem e dos direitos reais na França uma "questão de comum
interesse para todos os soberanos europeus”. Como era natural, essa declaração
causou vivo ressentimento entre os franceses, visto que não podia ser
interpretada de outra maneira senão como uma clara ameaça de intervenção.
Acresce, que a perspectiva de um conflito com inimigos estrangeiros era do
agrado de muitos revolucionários. Enquanto a facção moderada esperava
que um êxito militar consolidasse a lealdade do povo ao novo regime, numerosos
radicais clamavam pela guerra, contando em segredo com uma derrota dos
exércitos franceses para desacreditar de todo a monarquia. Poder-se-ia então
proclamar a república e os heróicos soldados do povo converteriam a derrota
numa vitória e levariam os benefícios da liberdade a todos os povos oprimidos
da Europa. Inspirada nessas considerações, a Assembléia votou pela guerra no
dia 20 de abril de 1792. Conforme esperavam os radicais, as forças francesas
sofreram sérios reveses. Em agosto os exércitos conjugados da Áustria e da
Prússia haviam atravessado a fronteira e ameaçavam tomar Paris. O furor e o
desespero apossaram-se da capital. Prevalecia a crença de que os desastres
militares resultavam de conluios traiçoeiros do rei e de seus adeptos
conservadores com o inimigo. Em consequência disto surgiu um vigoroso apelo em
prol de uma ação enérgica contra todos os que fossem suspeitos de deslealdade ã
Revolução. Foi acima de tudo essa situação que colocou os extremistas em
evidência e os capacitou a dominar a Assembléia Legislativa e pôr termo à
monarquia.
O governo da França durante a segunda fase: a Convenção Nacional
De 1 792 a 1 795 — isto é, durante a segunda fase
da Revolução e por mais um ano ainda — o poder dirigente da França foi a
Convenção Nacional. Originariamente eleita como uma assembléia constituinte,
seu papel devia ser o de redigir uma nova constituição e depois passar o poder
a um governo regular. De fato, a nova •constituição ficou pronta em 1 793, mas
a desordem reinante impediu que fosse posta em vigor. Justificando-se com o
estado de emergência nacional, a Convenção manteve-se no poder ano após ano.
Após a primavera de 1 793 delegou-as suas funções executivas a um grupo de
nove (mais tarde doze) de seus membros, conhecido como o Comitê de Salut
Public (Junta de Segurança Pública). Este órgão tinha a seu cargo as
relações exteriores, a fiscalização do comando do exército e a aplicação do
regime de Terror. Quanto à própria Convenção, compunha-se de numerosas facções
que representavam outras tantas correntes de opinião radical. As mais
importantes eram a dos girondinos e a dos jacobinos. Os primeiros, que tomavam
assento à direita na Convenção; apoiavam-se sobretudo nas províncias
e tendiam a desconfiar do proletariado. Eram republicanos, porém não democratas
extremistas. Seus adversários jacobinos, que se sentavam à esquerda,
contavam-se entre os radicais mais intransigentes da Revolução (13).
Embora a maioria deles procedesse da classe média, eram ardentes discípulos de
Rousseau e defensores militantes do proletariado urbano. Acusavam os girondinos
de desejar uma "república aristocrática" e de planejar a desunião da
França mediante um sistema federal em que os "departamentos" seriam
engrandecidos a expensas de Paris.
Entre os líderes da Convenção Nacional figuram
algumas das personalidades mais interessantes e dramáticas da história moderna.
Os líderes moderados da Convenção Nacional: 1) Thomas Paine
No grupo dos girondinos tornaram-se famosos
Thomas Paine (1737-1809) e o Marquês de Condorcet (1 743-94). Continuando a sua
brilhante atividade de panfletário da Revolução Americana, Paine embarcara para
a Inglaterra, decidido a abrir os olhos do povo desse país para "a loucura
e a estupidez do governo". Em 1791 publicou sua célebre obra Os
Direitos do Homem, que era um ataque virulento ao livro de Edmund Burke, Reflexões
sobre a revolução da França, aparecido no ano anterior. Os Direitos do
Homem causou sensação, especialmente depois das mal inspiradas tentativas
do governo para apreendê-lo. Acusado de traição, o autor conseguiu fugir para a
França antes de ser preso. Em 1792 foi eleito para a Convenção Nacional e
imediatamente ganhou preeminência como um dos mais moderados líderes dessa
assembléia. Instava pela abolição da monarquia mas opunha-se à execução do rei,
alegando que isso iria alienar a simpatia dos americanos. Incorreu por
fim na suspeita de alguns extremistas e escapou da guilhotina por ouro acaso.
(13) o Clube dos Jacobinos nem sempre tinha sido
radical. Durante os primeiros dias dla Revolução contara entre seus
membros elementos reconhecidamente moderados como Mirabeau, Sieyès e Lafayette.
Em 1791, no entanto, caiu sob o domnio dos extremistas chefiados por
Maximiliano Robespierre.
2) Condorcet
O Marquês de Condorcet era um homem de
temperamento mais brando que Paine, embora tivesse propensões filosóficas
semelhantes. Tendo começado como discípulo de Voltaire e Turgot, foi
posteriormente tem mais longe do que esses liberais burgueses nos seus
pedidos de reforma. Não só condenava os males do absolutismo, do mercantilismo,
da escravidão e da guerra, como o fizeram
muitos pensadores esclarecidos da época, mas também foi um dos primeiros a
sustentar que o principal escopo de todo governo deveria ser o de combater a
pobreza. Julgava possível atingir em grande parte essa finalidade pela abolição
dos monopólios e privilégios, do direito de primogenitura e da vinculação dos
bens de raiz. O afastamento desses obstáculos permitiria uma ampla distribuição
da propriedade, especialmente da agrária, habilitando assim a maioria dos
cidadãos a conquistar a independência econômica. Patrocinava também as pensões
para os velhos e o sistema bancário cooperativo para proporcionar condições
favoráveis de crédito (14). No auge do Terror, Condorcet foi posto
fora da lei por haver denunciado a violência dos jacobinos teve de fugir para
salvar a sua vida. Disfarçado como carpi: vagueou esfomeado pelo interior
do país até que uma noite a taram dele e o jogaram à prisão. Na manhã seguinte
encontraram-no estendido no chão, morto. Não se sabe ao certo se morreu de frio
e era : insequência das provações por que passara, ou se tomou um veneno que
carregava, ao que se dizia, num anel.
(14)J.
S. Schapiro, Condorcet and the Rise of Liberalism, pp.
142-55.
Os chefes extremistas: Marat e Danton
Entre os líderes das facções extremistas
salientaram-se Marat, Danton e Robespierre. Jean Paul Marat (1 743-93) tinha
estudado medicina e em 1789 já granjeara bastante fama na sua profissão para
ser contemplado com um grau honorário pela Universidade de Sto André, da
Escócia. Quase desde o início da Revolução apresentou-se como o campeão do
povo. opondo-se às asserções dogmáticas dos seus o legas
burgueses da Assembléia, inclusive a idéia de que a França devia moldar o seu
governo pelo da Grã-Bretanha, que ele sabia ser oligárquico na forma. Em breve tornou-se
vítima de perseguições, sendo obrigado a procurar refúgio em esgotos e
enxovias, mas isso não o levou a desistir das tentativas para incitar o
povo a defender os seus direitos. Em 1793 foi apunhalado no a ração por Charlotte
Corday, uma moça fanaticamente devotada aos gerondinos. Em contraste com Marat,
Georges jacques Danton (1759-94) .só alcançou preeminência quando a Revolução
já estava no seu terceiro ano, mas, como aquele, orientou a sua atividade no
sentido de instigar as massas à rebelião. Eleito em 1 793 para a Junta de
Segurança Pública, teve importante papel na organização do Terror. Mas, com o
passar do tempo, parece ter-se cansado de tanta desumanidade e revelado uma
propensão fatal para a transigência. Isso deu uma oportunidade aos seus
adversários da Convenção e, em abril de 1794, foi enviado para a guilhotina.
Conta-se que ao galgar os degraus do cadafalso disse: "Mostrem a minha
cabeça ao povo; não é todos os dias que ele vê coisa parecida."
O mais famoso e talvez o maior de todos os
líderes extremistas foi Maximiliano Robespierre (1 758-94). Pertencente a uma
família que passava por ser de origem irlandesa, Robespierre estudou direito e
não tardou a conquistar um êxito modesto como advogado. Em 1 782 foi nomeado
juiz criminal, mas em breve resignou o cargo por não ter coragem de impor uma
sentença de morte. De temperamento nervoso e tímido, nunca demonstrou grande
capacidade prática, mas procurava compensar essa falha com uma devoção fanática
aos princípios. Abraçara a crença na filosofia de Rousseau como a grande
esperança de salvação para toda a humanidade. A fim de pô-la em prática estava
pronto a empregar todos os meios que pudessem ser eficazes, sem levar em
consideração o que isso viesse a custar para si ou para os outros. Essa
fervorosa lealdade a uma doutrina que exaltava as massas acabou por lhe
granjear uma multidão de adeptos. Tal era o favoritismo de que gozava entre o
público que pode usar até o fim da vida os calções, as meias de seda e o cabelo
empoado característicos da velha sociedade. Em 1 791 tornou-se o oráculo do
Clube dos Jacobinos, já então expurgado de todos que não fossem os elementos
mais radicais. Mais tarde foi eleito presidente da Convenção Nacional e membro
da Junta de Segurança Pública. Embora seu papel tivesse sido insignificante ou
nulo na instauração do regime de Terror, foi largamente responsável pela
extensão desse regime. Chegou mesmo a justificar a crueldade como necessária e,
portanto, como um expediente louvável para promover o progresso da Revolução.
Nas últimas seis semanas de sua ditadura virtual rolaram no cadafalso de Paris
nada menos de 1 285 cabeças. Mais cedo ou mais tarde, porém, tais métodos
teriam fatais a êle próprio. Em 28 de julho de 1 794, Robespierre
juntamente com vinte e um de seus auxiliares imediatos foram guilhotinados sem
mais julgamento que o que êle costumava conceder aos seus adversários.
A extensão da violência durante a segunda fase
É provável que as verdadeiras proporções da
violência durante segunda fase da Revolução jamais venham a ser conhecidas.
Muitas histórias de horrível carnificina que circularam nesse
tempo e mais tarde eram exageradas ao extremo. Nenhuma rua se tornou vermelha
de sangue, nem os rios ficaram atulhados de cadáveres. Não obstante, é certo
que a matança foi estarrecedora. Durante o período do Terror, que .se estendeu
de setembro de 1 793 a julho de 1 794, as estimativas mais fidedignas
orçam o número de execuções em aproximadamente 20000 para toda a França. Uma
lei promulgada em 17 de setembro de 1 793 tornava objeto de suspeição
quem quer que tivesse tido ligações com o governo dos Bourbons ou com os
girondinos: e nenhuma pessoa que fosse suspeita, ou de quem se
desconfiasse ser suspeita, estava a salvo de perseguições. Quando, algum
tempo depois, perguntaram ao padre Sieyès o que fizera para se
distinguir durante o Terror, respondeu lacônicamente: "Sobrevivi". Em
última análise, entretanto, deve-se reconhecer que a mortandade durante a
Revolução Francesa foi muito menor do que na maioria das guerras civis e
internacionais. As 20 000 vítimas do Terror não suportam comparação, por
exemplo, com as centenas de milhares de vidas ceifadas pela Guerra de Secessão
norte-americana. Napoleão Bonaparte, que muitos cultuam como um herói, foi
responsável, no mínimo, por um número de mortes vinte vezes maior do que as
causadas pelo Comité de Salut Public. Está claro que com isto não
pretendemos desculpar a selvajaria do terror, mas tão somente corrigir uma
imagem deformada.
Realizações da segunda fase
A despeito da violência do Terror, a segunda fase
da Revolução Francesa caracterizou-se por algumas realizações muito valiosas.
Chefes como Robespierre, malgrado o seu fanatismo, não deixavam de ser
humanitários sinceros e não seria crível que perdessem a oportunidade de
iniciar reformas. Entre os seus feitos mais significativos contam-se a abolição
da escravidão nas colônias e dívida, a adoção do sistema decimal de pesos e
medidas e a supressão do direito de primogenitura, de forma que a propriedade
não fosse mais herdada exclusivamente pelo filho mais velho e sim dividida em
porções substancialmente iguais entre todos os herdeiros imediatos. A Convenção
procurou também suprir as deficiências dos decretos da Assembléia Nacional que aboliam os vestígios do feudalismo,
estabelecendo medidas no sentido de liberdade maior no gozo das oportunidades
econômicas. Os bens dos inimigos da Revolução foram confiscados em benefício do
governo e das classes inferiores. As grandes propriedades foram parceladas e
oferecidas à venda em condições muito favoráveis aos cidadãos mais pobres. As
indenizações anteriormente prometidas aos nobres pela perda dos seus
privilégios foram abruptamente canceladas. A fim de refrear o aumento do
nisto da vida a lei fixou os preços máximos do trigo e de outros artigos de
primeira necessidade ao mesmo tempo que os comerciantes aproveitadores eram
ameaçados com a guilhotina. Também da prisão por foram adotadas medidas
reformistas no setor religioso. Houve um momento, durante o Terror, em que se
tentou abolir o cristianismo e erigir em seu lugar o culto da Razão. Dentro
desse espírito adotou-se um novo calendário, fazendo começar o ano na data da
proclamação da República (22 de setembro de 1 792 \ e dividindo os meses
de modo a eliminar o domingo cristão. Ao conquistar o poder, Robespierre
substituiu esse culto da Razão por uma religião deísta que compreendia o culto
de um Ser Supremo e a crença na imortalidade da alma.
Finalmente, em 1 794, a Convenção adotou o critério mais sensato de fazer da
religião um assunto particular de cada um. Resolveu-se estabelecer uma
separação completa entre a igreja e o estado e tolerar todas as crenças que não
fossem positivamente hostis ao governo.
Fim da Segunda Fase: Termidoriana
No verão de 1 794 o Terror chegou ao seu termo e,
logo depois, a Revolução entrou na terceira e última fase. O acontecimento que
assinalou essa mudança foi a Reação Termidoriana-cujo nome deriva do mês de
termidor (mês do calor — 19 de julho a 18 de agosto) do novo calendário. A
execução de Robespierre a 28 de julho de 1 794 representava a completação de um
ciclo. A Revolução havia devorado os seus próprios filhos. Um após outro,
tinham caído os gigantes radicais: primeiro Marat, depois Hébert e Danton, e
por fim Robespierre e Saint-Just. Os únicos líderes que restavam na Convenção
eram homens de tendências mais moderadas. Com o decorrer do tempo,
inclinavam-se para um conservantismo crescente e para o emprego de toda espécie
de chicana política que servisse para- mantê-los no poder. Mais uma vez a
Revolução passou, aos poucos, a refletir os interesses da burguesia. Foi então
desfeita grande parte da obra extremista dos radicais. Revogaram-se a lei dos
preços máximos e a dos "suspeitos". Os prisioneiros políticos foram
soltos, os jacobinos tiveram de procurar esconderijos e a Junta de Segurança
Pública foi despojada dos seus poderes despóticos. A nova situação possibilitou
a volta dos padres, dos monarquistas e outros emigrados, os quais vieram
juntar o peso da sua influência às tendências conservadoras.
Terceira Fase: A Constituição Conservadora do Ano III
Em 1 795 a Convenção Nacional adotou uma nova
constituição que apunha o sinete da aprovação oficial à vitória das classes
abastadas. A nova lei orgânica, conhecida como a Constituição do Ano III,
concedia o sufrágio a todos os cidadãos adultos do sexo masculino que soubessem
ler e escrever, mas estes só poderiam votar em eleitores que escolheriam, por
sua vez, os membros do Corpo Legislativo; e para ser eleitor era preciso
possuir uma fazenda ou qualquer outra propriedade cuja renda anual equivalesse,
no mínimo, a cem dias de trabalho. Ficava assim assegurado que a autoridade do governo
derivaria efetivamente de cidadãos de fortuna considerável O Corpo Legislativo
compor-se-ia de duas câmaras: uma câmara baixa ou Conselho dos
Quinhentos, e um senado ou Conselho dos Anciãos. Não sendo praticável restaurar
a monarquia, por se temer a Toha da antiga aristocracia ao poder, o
poder executivo foi investido numa junta — o Diretório — composta de cinco
homens que seriam indicados pelo Conselho dos Quinhentos e eleitos pelo
Conselho dos Anciãos. A nova constituição não só incluía uma declaração dos
direitos mas também uma especificação dos deveres do cidadão. Ocupava
lugar de destaque entre estes últimos a obrigação de ter presente ao espírito
que "e sobre a manutenção da propriedade. . . que assenta toda a
ordem social".
Ninguém poderia esperar que um sistema tão
categórica: contrário aos direitos das massas pudesse florescer sem. opc Nem
bem a Constituição do Ano III fora posta em vigor, os jacobinos organizaram,
sob a chefia de "Graco" Babeuf, um movimento para derribá-la. ^^Q^aco^
Esse homem, redator-chefe da Tribuna do Povo e Babeuf fundador
da Sociedade dos Iguais, tem sido muitas vezes chamado o primeiro socialista
moderno. Mas, ao que parece o verdadeiro socialismo estava bem longe dos seus
objetivos, que não diferiam muito dos demais jacobinos radicais. Visava ele
uma sociedade em que todos os homens seriam proprietários em proporções
substancialmente iguais. A fim de atingir esse escopo, exigia que se procedesse
à confiscação e à redistribuição do excesso de for dos ricos. Em setembro de 1
796 os seus adeptos, em número aproximado de 17 000, lançaram um ataque
contra a guarnição militar de Grenelle, na esperança de que esta passasse para
o seu lado e se juntasse a eles numa marcha sobre Paris. O tentame
redundou em lamentável fracasso. Pouco depois Badeuf e seu principal ajudante
foram condenados por traição, sendo executados em maio do ano seguinte. Isso
pois fim à derradeira tentativa de converter a Revolução Francesa num movimento
em prol da melhoria econômica das classes inferiores.
O caráter corrupto da Terceira Fase
A terceira fase da Revolução Francesa teve
pequena importância histórica em comparação com as outras duas. Tomada em
conjunto, foi um período de estagnação, de corrupção generalizada e de cinismo.
Tinha-se volatizado o ardente zelo reformador que as duas fases
precedentes. Os membros do novo governo interessavam-se muito mais pelas
oportunidades de proveito pessoal do que pelos planos brilhantes dos
filósofos para recompor o mundo. O suborno era concomitância habitual do
lançamento e arrecadação de impostos, bem assim como do emprego de fundos
públicos. Até alguns membros do Diretório exigiam peitas, com toda a desfaçatez,
em troca de favores que tinham a obrigação de conceder no exercício de suas
funções normais. Essa cobiça cínica nas altas esferas não podia deixar de ter
seus efeitos nas normas gerais da sociedade. Não é de surpreender, portanto,
que o período do Diretório tenha sido uma época de louca extravagância e
dissipação, de desenfreada competição pela riqueza. A especulação e o jogo
tendiam a relegar a um plano .secundário os negócios honestos. Enquanto a fome
rondava os bairros pobres de Paris os aproveitadores acumulavam fortunas e
ostentavam sem pejo os seus ganhos adquiridos a expensas do povo. A tanto
chegaram as gloriosas promessas da Revolução, arrastadas na lama até mesmo por
alguns que a princípio haviam jurado defendê-las!
Fim da Revolução: O Golpe de Napoleão Bonaparte
No outono de 1 799 encerrou-se a era da Revolução
Francesa. O acontecimento que assinalou esse fim foi o golpe de estado de
Napoleão Bonaparte, em 18 brumário (9 de novembro). Esse, contudo, não foi
mais que o golpe de misericórdia. Já desde algum tempo o regime instaurado pela
Constituição do Ano III vinha pairando à beira do colapso. Embora tivesse sido
temporariamente fortalecido por algumas vitórias militares — pois ainda
prosseguia a guerra contra os inimigos estrangeiros da Revolução — por fim até
esse apoio falhou. Em 1 798-99, a política agressiva do Diretório envolveu a
França numa luta com nova coligação de adversários poderosos: Grã-Bretanha,
Áustria e Rússia. A sorte das batalhas não tardou a mudar. Um após outro,
caíram por terra os estados satélites que os franceses haviam levantado em sua
fronteira oriental. Os exércitos da república foram expelidos da Itália.
Tornou-se logo evidente que as conquistas dos anos anteriores iam reduzir-se a
nada. Enquanto isso, o Diretório vinha sofrendo uma perda ainda maior de
prestígio em virtude da sua conduta dos negócios interiores. Milhares de
pessoas estavam revoltadas com a vergonhosa corrupção dos funcionários públicos
e com a sua desumana indiferença ante as necessidades dos pobres. O que ainda
mais agravava a situação era a séria crise financeira, pela qual o governo era
em parte responsável. A fim de atender às despesas de guerra e aos gastos
extravagantes de administradores incapazes, multiplicaram-se as emissões de assignats,
ou papel-moeda. Os resultados inevitáveis foram uma tremenda inflação e um
completo caos. Dentro de pouco tempo os assignats sofreram enorme
depreciação, até não serem aceitos por mais de 1% do seu valor nominal. Em 1
797 as condições tinham piorado de tal forma que não houve outro reme d: senão
repudiar todo o papel-moeda em circulação. Durante o período de caos financeiro
milhões de cidadãos precavidos e respeitáveis, que tinham conseguido acumular
certas posses, viram-se reduzidos ao nível de proletários. O efeito natural foi
convertê-los em inimigos rancorosos do governo constituído.
Razões da vitória de Napoleão
Foi nessas condições deploráveis que se tornou
relativamente fácil a ascensão de Bonaparte. O sentimento de revolta
ante a venalidade e a indiferença do governo, o rastilho de ódio deixado
pelas agruras da iníciaço, a humilhação resultante das derrotas militares
— tais foram os fatores que encorajaram a convicção largamente difundida de que
o regime em vigor era intolerável e só o aparecimento de um "homem a
cavalo" poderia salvar a nação da ruína. Em outras palavras. Napoleão
subiu ao poder em condições bastante similares às que presidiram ao nascimento
de ditaduras mais recentes na Alemanha e na Itália. Mas está claro que o jovem
Bonaparte era um herói militar, o que não se dava com Hitler ou Mussolini. Em 1
795 tornara-se benquisto aos amigos da lei e da ordem por haver defendido a
Convenção Nacional com uma ”rajada de metralha" contra um levante de
insurretos parisienses. Mais tarde cobrira-se de glória com as suas campanhas
na Itália e no Egito. É verdade que as notícias de seus êxitos neste último
país tinham sido um pouco exageradas, mas convenceram os patriotas franceses de
que tinham nele, ao menos, um general em cuja capacidade podiam depositar
absoluta confiança. Além disso, ninguém podia contestar que ele expulsara os
austríacos da Itália e anexara à França a Sabóia, Nice e as províncias
austríacas dos Países-Baixos. Não é muito de admirar que Napoleão passasse a
ser considerado o homem do momento. Seu nome tornou-se um símbolo da grandeza
nacional e dos gloriosos feitos da Revolução. E, à medida que crescia o
sentimento de repulsa contra o Diretório, era ele mais do que nunca saudado
como o herói incorruptível que .salvaria a nação da vergonha e do desastre.
3. Os bons e os maus frutos da revolução
A Influência da Revolução Francesa
Ainda que a ascensão de Napoleão Bonaparte ao
poder como ditador militar tenha marcado o início de uma nova era, não anulou
de forma alguma a influência da Revolução Francesa. Efetivamente, como se verá
no próximo capítulo. o próprio Napoleão manteve algumas das conquistas
revolucionárias e assumiu a atitude de campeão invencível da igualdade e da
fraternidade, se não da liberdade. Mas, ainda que ele não tivesse agido desse
modo, a herança da Revolução teria indubitavelmente sobrevivido. Um movimento
que tão profundamente abalara as bases da sociedade jamais poderia ter passado
à história sem deixar um rastro de momentosos resultados.
Sua influência repercutiu através de quase todo o
século XIX e fez-se sentir em muitas nações do mundo ocidental. A nova paixão
da liberdade foi a força-propulsora de numerosas insurreições e
"revoluções" que pontilharam o período entre 1800 e 1850. A primeira
a ocorrer foi a sublevação dos espanhóis contra José Bonaparte, em 1808.
Seguiu-se lhe uma verdadeira epidemia de distúrbios revolucionários entre 1820
e 1831, em países como a Grécia, a Itália, a Espanha, a França, a Bélgica e a
Polônia. Finalmente, os movimentos revolucionários de 1848 estavam longe de ser
completamente alheios ao grande levante francês de 1 789, pois que a maioria
deles se inspirava no mesmo entusiasmo nacionalista e em ideais semelhantes de
liberdade política.
Os Frutos mais duradouros da Revolução
A Revolução Francesa também teve outros
resultados de caráter mais duradouro e mais benéfico para a humanidade em
geral. Foi, antes de mais nada, ura vigoroso golpe contra a monarquia
absoluta. Daí em diante, poucos reis ousaram arrogar-se uma autoridade
ilimitada. Mesmo quando, em 1 814, um Bourbon foi restaurado no trono da
França, não demonstrou quaisquer pretensões à missão divina de governar como
bem lhe aprouvesse. Em segundo lugar, a Revolução Francesa fez desaparecer
quase todos os remanescentes de um feudalismo em plena decadência, inclusive a
servidão e os privilégios feudais dos nobres. Todas as corporações foram
abolidas para nunca mais reviver. Posto que subsistissem ainda alguns vestígios
do mercantilismo, os seus dias, como doutrina política acatada pelos governos,
estavam positivamente contados. Embora a separação entre a Igreja e o Estado,
consumada em 1794, acabasse sendo anulada por Napoleão, não deixou de fornecer
um precedente para o divórcio definitivo da religião e da política, não só na
França mas também em muitos outros países. Entre os restantes resultados
benéficos da Revolução podem ser mencionados a abolição da escravidão nas
colônias francesas, a eliminação da prisão por dívidas, o cancelamento do
direito de primogenitura e uma distribuição mais ampla das terras, graças ao
parcelamento das grandes propriedades. Por fim, as bases de duas das mais
importantes realizações de Napoleão — as reformas educacionais e a codificação
das leis — foram assentadas, na realidade, pelos chefes da Revolução.
O legado de maus frutos
Não se pode negar, por outro lado, que a
Revolução Francesa também tenha tido os seus frutos amargos. Foi ela em grande
parte responsável pelo desenvolvimento do nacionalismo
"chauvinista" como ideal dominante. O nacionalismo, está claro, nada
apresentava de novo.
Pode ser encontrado quase que na própria origem
das mais antigas civilizações manifestou-se na obsessão dos hebreus de serem o
Povo Eleito e no exclusivismo racial dos gregos. Mesmo em sua forma europeia
moderna, tem raízes que se estendem ao século XIII. Sem embargo, o nacionalismo
só se tornou uma força realmente virulenta e avassaladora depois
da Revolução Francesa. Foi o orgulho do povo francês pelo que tinha realizado e
a sua determinação de preservar tais conquistas que deram origem ao patriotismo
fanático tão bem exemplificado pela sua emocionante canção guerreira, a Marselhesa.
Pela primeira vez na história moderna, uma nação inteira se punha em pé
de guerra. Em contraste com os exércitos profissionais relativamente pequenos
do passado, a Convenção Nacional, em 1 793, alistou cerca de
800000 homens, ao passo que milhões de outros,, atrás das linhas de
combate, dedicavam as suas energias à gigantesca tarefa de eliminar os
desacordos internos. Operários, camponeses e burgueses, todos cerraram fileiras
sob o lema de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" como em
defesa de uma causa sagrada. O cosmopolitismo e o pacifismo dos filósofos
iluministas ficaram completa te esquecidos. Mais tarde esse patriotismo
militante contaminei: as terras, contribuindo com o peso da sua influência para
alimentar as ideias exaltadas de superioridade nacional e os ódios raciais. Por
fim, a Revolução Francesa teve por consequência uma deplorável
depreciação da vida humana. A carnificina de milhares de pessoas durante o
Terror, muitas vezes sem que lhes pudesse ser assacada qualquer culpa,
mas simplesmente como meio de infundir pavor nos inimigos da Revolução,
tendeu a criar a impressão de que a vida do homem pouco ou nada valia em
confronto com os nobres objetivos do partido que ocupava o poder. Essa
impressão talvez contribua para explicar a relativa indiferença com que, alguns
anos depois, a França aceitou o sacrifício de centenas de milhares de seus
filhos para satisfazer as ambições ilimitadas de Napoleão,
Fonte: Editora Globo 1959. História da
Civilização Ocidental, tradução de Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos
Machado e Leonel Vallandro.
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