O JUSTO E A JUSTIÇA
POLÍTICA
Ruy Barbosa
Para os que vivemos a
pregar à república o culto da justiça como o supremo elemento preservativo do
regime, a história da paixão, que hoje se consuma, é como que a interferência
do testemunho de Deus no nosso curso de educação constitucional. O quadro da ruína
moral daquele mundo parece condensar-se no espetáculo da sua justiça,
degenerada, invadida pela política, joguete da multidão, escrava de César. Por
seis julgamentos passou Cristo, três às mãos do dos judeus, três às dos
romanos, e em nenhum teve um juiz.
Aos olhos dos seus
julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou
estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais, que bastem, para abrigar o
direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados.
Grande era, entretanto,
nas tradições hebraicas, a noção da divindade do papel da magistratura.
Ensinavam elas que uma sentença contrária à verdade afastava do seio de Israel
a presença do Senhor, mas que, sentenciando com inteireza, quando fosse apenas
por uma hora, obrava o juiz como se criasse o universo, porquanto era na função
de julgar que tinha a sua habitação entre os israelitas a majestade divina.
Tampouco valem, porém, leis e livros sagrados, quando o homem lhes perde o
sentimento, que exatamente no processo do justo por excelência, daquele em cuja
memória todas as gerações até hoje adoram por excelência o justo, não houve no
código de Israel norma, que escapasse à prevaricação dos seus magistrados.
No julgamento
instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de
Quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer da Sexta-feira
subsequente, foi tumultuário, extrajudicial, a atentatório dos preceitos
hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro
de formação judicial, o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma
aparência de legalidade, porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por
um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma
jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos, que faz da santidade das
formas a garantia essencial da santidade do direito.
O próprio Cristo
delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o interroga Anás,
transgredindo as regras assim na competência, como na maneira de inquirir; e a
resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se fora da lei:
"Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no
templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas. Por que me
interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses sabem o que eu lhes
houver dito". Era apelo às instituições hebraicas, que não admitiam
tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha jus ao
julgamento coletivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores não poderia
haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria
em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico.
Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os seus juizes, logo o esbofetearam.
Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes pontífice? Sim,
revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal: "Se mal falei, traze
o testemunho do mal; se bem, por que me bates?"
Anás, desorientado,
remete o peso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do ano. Mas, ainda assim,
não, não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho supremo. Perante
este já muito antes descobrira o genro de Anás a sua perversidade política,
aconselhando a morte a Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe agora levar a
efeito a sua própria malignidade, "cujo resultado foi a perdição do povo,
que ele figurava salvar, e a salvação do mundo, em que jamais pensou".
A ilegalidade do
julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem nos litígios civis,
agrava-se então com o escândalo das testemunhas falsas, aliciadas pelo próprio
juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o
primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem, lhe
não acharam a culpa, que buscavam. Jesus calava. Jesus autem tacebat. Vão
perder os juizes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia do sumo
sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o
Caifás em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E
diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar, aquele, que a
não renegara, vê-se declarar culpado de crime capital: Réus est mortis.
"Blasfemou! Que necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia".
Ao que clamaram os circunstantes: "é réu de morte".
Repontava a manhã,
quando a sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenário que se
ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In universo concilio, diz Marcos.
Deste modo se dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do
dia se observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléia
judicial, o requisito da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram
os juizes legais. Mas juizes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não
podiam representar senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam
mancomunados, para condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois
imitado até hoje, desses tribunais, que se conchavam de véspera nas trevas,
para simular mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.
Saía Cristo, pois,
naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus
sanguinis. Não podia pronunciar a pena de morte. Era uma espécie de júri, cujo
veredictum, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os
juizes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livres, para condenar, ou
absorver. "Que acusação trazeis contra este homem?" assim fala por
sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica ainda hoje rege a terra
civilizada. "Se não fosse um malfeitor, não to teríamos trazido", foi
a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor
num processo, de que não conhecera, pretende evitar a dificuldade, entregando-lhes
a vítima: "Tomai-o, e julgai-o segundo a vossa lei". Mas, replicam os
judeus, bem sabes que "nos não é lícito dar a morte a ninguém". O fim
é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.
Aqui já o libelo se
trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que se trata, senão de
atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor que se inculca filho
de Deus: é o conspirador, que se coroa rei da Judéia. A resposta de Cristo
frustra ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores. Seu reino não era deste
mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das instituições nacionais, nem a
estabilidade da conquista romana. "Ao mundo vim", diz ele, "para
dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da verdade, há de escutar a
minha voz". A verdade? Mas "que é a verdade"? pergunta
definindo-se o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade; mas a da inocência de
Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro dessas almas, onde
reina o poder absoluto das trevas. "Não acho delito a este homem",
disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.
Devia estar salvo o
inocente. Não estava. A opinião pública faz questão da sua vítima. Jesus tinha
agitado o povo, não ali só, no território de Pilatos, mas desde Galiléia. Ora
acontecia achar-se presente em Jerusalém o tetrarca da Galiléia, Heródes
Antipas, com quem estava de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente
ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de
boa avença com a multidão inflamada pelos príncipes dos sacerdotes. Galiléia
era o forum originis do Nazareno. Pilatos envia o réu a Heródes,
lisonjeando-lhe com essa homenagem, a vaidade. Desde aquele dia um e outro se
fizeram amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt amici Herodes et Pilatus in ipsa die; nam antea inimici
erant ad invicem. Assim se reconciliam os tiranos sobre
os despojos da justiça.
Mas Herodes também
não encontra, por onde condenar a Jesus, e o mártir volta sem sentença de
Herodes a Pilatos que reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do
justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava. Nullam causam
inveni in homine isto ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba
recrudesce. Mas Pilatos não se desdiz. Da sua boca irrompe a Quarta defesa de
Jesus: "Que ma fez esse ele? Quid enim mali fecit iste?" Cresce o
conflito, acastelam-se as ondas populares. Então o procônsul lhes pergunta
ainda: "Crucificareis o vosso rei?" A resposta da multidão em grita
foi o raio, que desarmou as evasivas de Pilatos. "Não conhecemos outro
rei, senão César". A esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo
da alma do governador da província romana. O monstro de Cáprea, traído,
consumido pela febre, crivado de úlceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades
os seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples
suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu,
lavando as mãos em presença do povo: "Sou inocente do sangue deste
justo".
E entregou-o aos crucificadores.
Eis como procede a justiça, que se não compromete. A história premiou
dignamente esse modelo da suprema cobardia na justiça. Foi justamente sobre a
cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua infâmia o sangue do
justo.
De Anás a Herodes o
julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida
pela facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua
inocência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a
crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um
tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do povo e
subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão
de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos
indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do
povo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as
transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam,
como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão derramar, do
atentado, que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito
pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão
de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não
escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação
para o juiz covarde.
(A imprensa, Rio, 31 de março de 1899, em Obras Seletas de Rui
Barbosa, vol. VIII, Casa de Rui Barbosa, Rio, 1957, págs. 67-71
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