A TAÇA SAGRADA
(O CÁLICE DA AMARGURA)
* Ítalo
Aslan
“Que vejo, senhores. Altera-se
o vosso semblante?...”
A batida forte dos malhetes, em
sequência, estremece o recipiendário e o tiram de um torpor.
A voz altissonante do Ven:. M:.
ecoa pelo recinto, colocando em dúvida as intenções do iniciando. A admoestação
o surpreende e o assusta. O que aconteceu? Que erro cometera?
Pronto. O objetivo fora alcançado.
A teatralidade da cena surtiu efeito e o recipiendario, apreensivo, aguarda o desenrolar
dos acontecimentos. Só isto basta. Nada mais. A participação da assembleia não
é prevista e é perfeitamente dispensável. O Ir.. Exp.. o conduz com brandura e,
silente, parece lamentar pelo possível fracasso de seu protegido. Consola-o de
maneira discreta, silenciosa. Surgira entre os dois, a essa altura, uma
afinidade, uma cumplicidade. Com as mãos sobre os ombros do iniciando, o Exp:.
o faz sentir-se seguro e parece dizer-lhe: “calma, aguardemos, nem tudo está
perdido...”. Afinal, o próprio Ven:. M:. exortara o recipiendário a
seguir com passos firmes o seu guia e que nada receasse.
A Maçonaria Francesa legou-nos,
no Rito Escocês Antigo e Aceito, o simbolismo do Cálice da Amargura, ou Taça Sagrada,
como é mais conhecida entre nós. É, na Cerimônia de Iniciação, uma passagem muito
rica, na qual o recipiendário é induzido a sentir o gosto da felicidade e dos prazeres
da vida, do Poder e do Conhecimento, como também é levado, ato contínuo, a ter
consciência de que essa felicidade e esses prazeres podem ser transitórios e
transformar-se-ão em sofrimentos, desgostos e amarguras se ele, o recipiendário,
for “perjuro e trair os seus deveres”. Consciente desse risco, o Cálice,
agora com o líquido amargo, será esgotado até o final, decidida e voluntariamente,
como a aceitar o desafio e o compromisso de cumprir, com rigor, o juramento de fidelidade
a seus Irmãos, guardando “o silêncio mais profundo sobre todas as
provas a que for exposta a sua coragem”.
Mas, apesar de estar contido
com todas as letras nos nossos Rituais, não nos parece ser o compromisso do
segredo e do “silêncio mais profundo sobre todas as provas” a
mensagem mais importante contida nessa passagem do Cerimonial de Iniciação.
Edouard E. Plantagenet, em seu “Causeries
Initiatiques pour le Travail en Loge d'Apprentis” fala do “frescor
dos primeiros goles” que “derrama o entusiasmo no coração do
Miste. Mas muda tudo de repente. Dores e amarguras fluem da taça
simbólica. A vaidosa ignorância de uns, a culposa ambição de outros,
o horrível egoísmo de todos corromperam a fonte pura”.
Além do já citado escritor belga,
naturalizado francês, Edouard E. Plantagent, o francês Jules Boucher e o suíço
Oswald Wirth, três dentre os mais importantes maçonólogos de língua francesa,
falam-nos do Cerimonial do Cálice da Amargura e o situam logo após o recipiendário
ter se submetido às três viagens e, por consequência, ter sido purificado pelo
ar, pela água e pelo fogo. Após as três viagens, e antes de fazer seu juramento
e ser-lhe permitido receber a Luz, o recipiendário passa pela “prova” do Cálice
da Amargura.
Há aí uma diferença em relação
aos rituais brasileiros nos quais ocorre, primeiro, o Cerimonial do Cálice da
Amargura e depois é que se procedem as três viagens, semelhantemente como descreve
José Diaz Carvalho em “Manual del Aprendiz, Del Compañero y del
Maestro”. Já Magister (Aldo Lavagnini) em “Manual del Aprendiz”, de
modo idêntico aos autores de língua francesa citados, também situa esse
cerimonial logo após as três viagens.
Em contrapartida, há rituais
brasileiros do R:.E:. A:. A:. que a ignoram, simplesmente. Neles não há o Cerimonial
da Taça Sagrada, em concordância, talvez com a opinião de que este é imbuído de
“um certo cunho religioso”. Enfim...
Os autores de língua francesa
também se reportam a um outro aspecto desse Cerimonial do Cálice da Amargura que
os rituais do R:.E:.A:.A:., nossos conhecidos, não praticam. Trata-se da transformação
do amargor em doçura, isto é, o recipiendário bebe inicialmente a bebida doce,
ingere até os últimos restos o líquido amargo e culmina em provar o agradável
sabor da bebida, agora, transformada, miraculosamente, em doce licor. “Ele
não retirou” – escreve Plantagenet – “a taça de líquido amargo
de seus lábios e, com resignado gesto, a esvazia, e a acre bebida torna-se
doce; a sua abnegação o libertou das trevas e o seu olhar nostálgico
percebe finalmente a Luz”.
Para Oswald Wirth, em “La
Franc-Maçonnerie rendue intelligible à ses adeptes”: “É então que o líquido acre
e ardente se converte em bebida reconfortante. O iniciado bebe as água do
Lete(*). Ele esquece as injúrias, e não sente mais seus castigos e, persistindo
em sua abnegação, ele reencontra no meio das tormentas da vida toda a
serenidade de espírito”.
Pois é. Achamos nós,
especulando, que talvez essa sequência de conversões – doce, amargo e depois
doce outra vez – seja simbolicamente viável porque tudo foi precedido pelas
viagens e, ao final de cada uma, pelas sucessivas purificações pelo ar, pela água
e pelo fogo, estando, portanto, o recipiendário em condições e preparado para
receber a Luz.
Essa situação é um pouco
diferente da que normalmente praticamos em “nosso” (aqui do Brasil) R:.E:.A:.A:..
Em nosso caso, o recipiendário passa primeiro, pelo Cerimonial do Cálice, com o
adequado juramento, para, só após, fazer as suas viagens e as respectivas
purificações que, aí sim, o tornará apto a receber a Luz. Há, entre o “Cálice”
e a Luz, um longo caminho a ser percorrido.
Jules Boucher é de opinião que “deveriam”
ser três as beberagens:
l) Insípida, caracterizando a
vida espiritual do profano;
2) Amarga, simbolizando a vida
do Iniciado, atormentado pela procura do conhecimento;
3) Doce, representando a vida
do adepto, daquele que alcançou a serenidade em busca da verdadeira Iniciação.
Já Nicola Aslan diz que os
líquidos “deveriam” ser, inicialmente insípido, isto é, água, (símbolo
da purificação profana), depois amarga (a angústia da procura),
finalizando com o vinho (símbolo do conhecimento esotérico e
iniciático).
Enfim, são maneiras diferentes
de praticar um Cerimonial marcante para o recipiendário, um Cerimonial com um simbolismo
muito rico que poderá ser obliterado se houver ingerências indevidas e inconvenientes
intervenções durante o seu processo.
(*) Letes (olvido): um dos
cinco rios do inferno, segundo a mitologia grega. Os outros quatro são:
Aqueronte (dor), Flagetonte (queimar); Cocito (lamentações), Estinge (horrível).
BIBLIOGRAFIA
1) ASLAN, Nicola; “Comentários
ao Ritual do Aprendiz-Maçom – Vade-Mécum Iniciático”; Ed. Maçônica “ATrolha”
Ltda; Londrina/PR.
2) BOUCHER, Jules; “ A
Simbólica Maçônica”; traduzido por Frederico Ozanam Pessoa de Barros; Ed.
Pensamento; SP; 1979.
3) MAGISTER; “Manual del
Aprendiz”; Editorial Kier; Buenos Aires; 3ª Edição; 1946.
4) PLANTAGENET, Edouard E.; “Causeries
Initiatiques pour le Travail em Loge d'Apprentis”; Davy-Livres; Paris; 1957.
5) WIRTH, Oswald; “La
Franc-Maçonnerie rendue intelligible à ses adeptes”; 1962.
6) WIRTH, Oswald; “El Ideal
Iniciático”; traduzido por D. Fernando Villard; Editorial Kier; Buenos Aires;
1951.
* Ítalo Aslan
Membro da Loja Renascimento -
GOIRJ/COMAB;
Titular da Cadeira Nº 13 da
Academia Niteroiense Maçônica de
Letras, História, Ciências e
Artes;
Revisor e colaborador do
Informativo "O Pesquisador Maçônico"
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