A
LEGALIDADE SERVIL
Lição
de um mestre, oferecida à reflexão dos obstinados.
O
escravismo fala atualmente contra a reforma a mesma linguagem com que a Idade
Média se opunha à filosofia de cujo seio saiu a revolução e a sociedade
moderna. A nossa posição hoje, porém, é duplamente vantajosa. A tirania exercida
pela nobreza feudal era um privilégio; mas esse privilégio estribava em foros
legais. Com o cativeiro entre nós não sucede o mesmo: é
um privilégio o direito dos senhores, mas um privilégio
ilegal. Já o demonstramos.
Demos,
todavia, a sua legalidade. Ainda assim, basta essa condição, para que ele se
sinta sobranceiro à reforma e apoiado no direito?
Não. Acima do direito formal, da legalidade estrita, existe um direito, mais
positivo do que esse, porque é, a um tempo, mais
legítimo e mais
forte: o
direito que resulta do desenvolvimento humano.
Há,
entre os nossos adversários muita gente que, uns por obcecação e interesse,
outros por ignorância e boa-fé, revestem-se de toda a gravidade da
ciência jurídica, e olham com desprezo, como profissionais
a leigos, os partidários da abolição. Pois enganam-se esses senhores. Não somos
tão profanos, nem eles tão jurisconsultos, quanto presumem.
Os
abolicionistas não são nenhuns apóstolos de uma aspiração ideal, devotos de uma
utopia, revolucionadores do direito. É no direito, cientificamente
real, da nossa época e da nossa nacionalidade
que nos firmamos contra a legalidade caduca do cativeiro.
Sorriam
embora de desdém os Tribonianos do escravismo. Não havemos de ficar sem padrinho
e fiador; e, para evitar exceções, iremos buscá-lo na terra clássica da
jurisprudência científica e do direito histórico, na grande Alemanha, a alma
mater de todos os jurisconsultos.
Entre
os homens que, daquele cimo iluminado, derramam sobre o mundo o verbo da ciência
jurídica, sobressai, nos primeiros lugares, como um dos pontífices desse
magistério supremo, o professor Holtzendorff.
Os
livros desse jurisconsulto, desse civilista, desse criminalista, desse
publicista extraordinário têm impressionado profundamente a Europa com a
seriedade, a originalidade e a superioridade do seu ensino.
De
uma recentíssima obra, Princípios de
Política, ainda não vertida em idioma algum, do autor
da Enciclopédia Jurídica —
extraímos hoje um capítulo, que parece escrito para os escravistas pertinazes
de nossa terra.
Ouçamos
Holtzendorff:
“O
único expediente regular (para revogar uma lei que não se acha de acordo com as
necessidades de uma nação) é o remédio que pode provir do Poder Legislativo.
Mas que cumprirá fazer, quando esse poder permaneça inativo, porque as classes
dominantes sejam interessadas na conservação dos abusos? Quando, descuidado dos
seus deveres e por própria comodidade, proceda parcialmente? E principalmente
quando deixe de dar o remédio legal reclamado, por denegarem o seu assentimento
os que devem participar na reforma?
“A
resposta é simples. Se o tino do juiz ou do público, como frequentemente
sucede, eludir a aplicação da lei, então desaparece o mal. Pelo contrário, é
iminente o perigo, quando os grandes aparelhos da vida do Estado obstam a esse
meio paliativo. Nesta alternativa, a
política, sem hesitar, deve infringir a lei e, em
lugar da injustiça legal, fazer imperar como lei
o direito acomodado às necessidades sociais.
“Dada
a hipótese que acabamos de definir, não vem absolutamente ao caso desculpar a violência
contra a lei positiva; é, ao invés, indispensável reconhecer nesse procedimento
uma necessidade moral, um dever, a que povos e
governos são obrigados a obedecer. Por maior
que seja o valor da lei, sob o ponto de
vista formal, é apenas relativo, e nunca absoluto.
Ninguém
se preocupe com o receio de que o arbítrio possa explorar este princípio em interesse
seu, e abusar dele. Uma lei que se torna incorrigível
e irrevogável, por isso mesmo que interrompe o desenvolvimento histórico do
direito, e obsta que se empregue o remédio legal para corrigir-lhe o dano, deve
ser posta fora do terreno do direito.
“As
condições políticas atuais do Mecklemburgo demonstram que as
classes privilegiadas, confiando em um pretenso direito histórico, quase sempre
deixam escapar as melhores ocasiões de iniciar medidas de maior prudência.
“A
história do direito público está repleta de aplicações do princípio que
estabelecemos. A violação formal da lei é
necessária e moralmente justificada, sempre que as classes
privilegiadas
recusam o seu concurso, legalmente preciso, para a abolição dos próprios privilégios,
na ocasião em que o pensamento da igualdade pessoal penetra as classes oprimidas,
ou a segurança do Estado é ameaçada por esses privilégios.
A abolição violenta da
escravidão, da servidão e da adscrição à gleba sem
indenização, bem como a extinção dos
antigos feudos pela monarquia absoluta, foram
imposições da justiça histórica.”
Ora,
depois desta lição, deixem-me acreditar que a lavoura brasileira, se quiser
refletir no assunto, bem pode mandar a ciência jurídica da resistência
escravista, pregada pelos Srs. Paulino de Sousa e Andrade Figueira, para as
coleções de fósseis, ou os museus de múmias.
GREY.
Jornal
do Commercio, 4 de março de 1885.
Publicações
a pedido.
Extraído
de “OBRAS SELETAS” – VOLUME 6
Rui
Barbosa
Nenhum comentário:
Postar um comentário